14/12/2024
Drama Biografia Filme de época

Madame Durocher

No século XIX, vêm para o Brasil as francesas Anne Durocher e sua filha, Marie. No Brasil imperial e ainda escravista, Anne estabelece uma butique no Rio de Janeiro. Mas ela adoece, forçando Marie a vende a loja. A moça alimenta o projeto de tornar-se parteira. É a primeira mulher admitida na Academia de Medicina, enfrentando o machismo e tornando-se uma referência feminina. No Festival Varilux.

post-ex_7

Coprodução entre o Brasil e a França, Madame Durocher resgata a figura de uma mulher muito importante na história da representação de gênero no Brasil e que permaneceu um tanto invisibilizada até aqui. Em pleno século XIX, ainda no período imperial e em vigência da escravidão, em 1871 ela foi a primeira mulher a entrar na Academia Imperial de Medicina - um feito notável inclusive em termos internacionais.

Reiterando sua recente adesão a cinebiografias, iniciada em 2022 com Eike - Tudo ou Nada, os diretores Dida Andrade e Andradina Azevedo percorrem algumas décadas da vida de Marie Josephine Mathilde Durocher que, nascida na França em 1809, veio para o Brasil ainda criança, com 7 anos, acompanhando sua mãe, a modista Anne Durocher (Marie-Josée Croze). Duas atrizes interpretam Marie nesse percurso, Jeanne Bourdieu na juventude e Sandra Corveloni na fase adulta. 

O andamento do filme é o clássico das cinebiografias históricas mas tem um dinamismo peculiar na primeira parte, da qual participa a atriz canadense-francesa Marie-Josée Croze (As Invasões Bárbaras). Na pele da mãe da protagonista, Anne, ela imprime uma energia esfuziante à figura desta mulher independente e altiva, optando por ser mãe solteira - vindo de uma longa linhagem familiar nesse sentido, como ela tem orgulho em afirmar -, ainda que sofrendo todos os esperados obstáculos de sua ousadia numa época repleta não só de preconceitos como de obstáculos legais para as mulheres.

Vem de Anne, portanto, a forma que molda a jovem Maria (Jeanne Boudier), traduzida no filme por uma sintonia singular e amorosa entre mãe e filha, que faz sentir falta da atriz canadense-francesa quando ela deixa a história.

Será, afinal, a morte desta mãe a primeira de uma série de tragédias na vida de Marie, forçada a vender a butique de Anne a um concorrente desleal, Tobias (Fernando Alves Pinto). Neste segmento que acompanha o amadurecimento da jovem, evidencia-se também o talento da atriz franco-brasileira Jeanne Boudier, que estreou como protagonista de Deslembro, de Flávia Castro).  

São da jovem Marie as lutas que definem sua trajetória, como o projeto de tornar-se parteira, sendo a primeira mulher a inscrever-se nesse curso na Academia de Medicina - e a cena que retrata seu primeiro dia de aula, numa sala repleta de homens agressivos e debochados, é um claro sinal do que a espera.

Marie tem, no entanto, um protetor, fundador da Academia de Medicina, o dr. Joaquim Cândido Soares de Meirelles (André Ramiro), ele mesmo símbolo vivo de outra singularidade: é um raríssimo médico negro, um homem livre que chegou a estudar na Universidade de Sorbonne. O filme explora bem este encontro dos dois, que resulta numa parceria de vida inteira, fundamental porque Marie continuará enfrentando restrições à sua atuação.

Em que pese a entrega de suas atrizes - entre as quais, deve-se destacar também Isabel Fillardis, como Clara, a escrava libertada por Marie que permanece a seu lado -, e no acúmulo de informações de que se nutre o roteiro, pesa um pouco no filme um tom um pouco acima em algumas interpretações masculinas. Notadamente, a de Mateus Solano como o dr. Hermínio, médico e professor da Academia, e de Adriano Toloza, como o dr. Guilherme, um colega de Marie, ambos seus ferrenhos opositores. 

Defendida por Sandra Corveloni na fase adulta, a figura de Marie também ganha uma gravidade um tanto mais solene, que destoa da energia da primeira parte - embora seja compreensível. A Marie madura tem pela frente os maiores obstáculos à sua atuação, quando tenta engajar-se no combate a epidemias de cólera e febre amarela, e novas tragédias familiares.

Mas o desafio maior, que o filme poderá contribuir para enfrentar, é mesmo o maior conhecimento da trajetória desta mulher ímpar, que teve a coragem de abrir caminhos num tempo em que isso parecia impossível. Ela mesma foi a prova de que não era.

post