Como muitos filmes contemporâneos hollywoodianos, Canina tem uma dificuldade enorme em mostrar, por isso confia demais na narração em off, a ponto de tornar-se excessivamente didático. Mesmo assim, uma Amy Adams, digamos, numa performance feroz, garante interesse ao longa escrito e dirigido por Marielle Heller, a partir do romance de Rachel Yoder.
A questão central aqui é a maternidade e a forma como foi colocada às mulheres ao longo dos milênios. Adams interpreta uma personagem que, nos créditos, é chamada apenas de Mãe, um indício de que sua identidade deixou de ser pessoal e se tornou uma função sócio-familiar. Como mãe, ela abandonou sua carreira como artista plástica e passa o tempo em casa cuidando de seu filho de 2 anos.
As atividades dela são devotadas a ele (e ao marido) ou com ele: do grupo de leitura na biblioteca (mediado por um sujeito chato com um violão) ao Baby Yoga, tudo gira em torno do pequeno Filho (interpretado pelos gêmeos Arleigh e Emmett Snowden). O Pai (Scoot McNairy) passa o tempo fora trabalhando e, quando volta é tão, ou mais, dependente do que o menino. Ele é incapaz, por exemplo, de pegar uma toalha, e do banheiro grita para a mulher lhe trazer uma.
Obviamente, a Mãe está cansada disso, desse peso de exploração e responsabilidade que anularam sua vida pessoal. Tudo isso está claro pela trama do filme, mas Heller insiste em offs mais do que banais para explicitá-lo, a fim de que não fique nenhuma dúvida. Esse é um dos maiores problemas de Canina, em que essa redundância é marcada por frases que mais parecem autoajuda lembrando a Mãe (e o público) de que ela é mulher antes de mais nada, entre outras coisas.
Depois de muito insistir que a personagem é explorada e abusada emocional e fisicamente com demandas que deveriam ser divididas com o Pai, o filme toma rumos surreais. A Mãe começa a se sentir estranha, mais feroz, mais animal, atraindo atenção de cachorros desconhecidos pela rua, saindo de casa à noite sem lembrar-se do que houve.
Dizendo que maternidade é algo ancestral, mas nem por isso instintivo. O longa aponta-a como uma construção social que não vem com manual de instrução e, por isso mesmo, tão complicada. Na biblioteca, a funcionária (Jessica Harper) lhe indica um livro chamado Um guia sobre mulheres mágicas, que transforma a vida da Mãe a um ponto sem retorno, fazendo-a encontrar sua fera interior.
Em mãos menos hábeis, a personagem poderia virar motivo de chacota, em sua transformação gradativa em cachorra, mas Adams sabe transitar entre o humor e a exasperação, humanizando uma personagem que, a princípio, era apenas um tipo. E, por essa interpretação da mulher que corre com cães, ela merecia uma indicação ao Oscar.