Vencedor de um prêmio de público em Sundance e de um Bafta como melhor estréia (roteirista/diretor/produtor britânico), o longa do diretor Rich Peppiatt esbanja energia, liberdade e transgressão para recontar a louca trajetória da banda irlandesa de hip hop Kneecap.
Autor do último vídeo da banda que agitou a cena de Belfast a partir de 2018, Peppiatt tem a boa sacada de escalar os próprios integrantes do trio para reviver na tela seus próprios papéis, inserindo toques ficcionais para enriquecer a história. Assim, somos logo apresentados a Móglaí Bap (nome artístico de Naoise Cairealláin), Mo Chara (Liam Óg) e DJ Próvai (JJ Dochartaigh), os dois primeiros, garotos do oeste de Belfast, o último, professor que vai colocar música nas letras encapetadas dos meninos. Tudo isso bem no meio de um acirrado debate nacional na Irlanda do Norte para implantar uma legislação que igualasse o status do idioma irlandês ao inglês, inclusive em tribunais e delegacias.
Encaixando seus personagens num visual agitado que combina câmera lenta, animação e permeia os acontecimentos com uma narração irônica, Peppiatt desenvolve a crônica desse momento do país, que acabara de deixar para trás os anos de tormenta, de enfrentamentos sangrentos entre a polícia, exército e o IRA (Exército Republicano Irlandês) para dar voz a esses jovens que foram chamados de “os filhos do cessar-fogo”. A política deles é a da música e do corpo, seja através do sexo, seja através de um consumo nada moderado de drogas que, aliás, Naoise e Liam traficam também. Este não é mesmo um filme comportado e bom-mocista. Seu grande trunfo é uma honestidade por vezes desconcertante, sempre encharcada de bom-humor, ironia e pitadas de uma inteligência política que se manifesta em seus próprios termos.
O maior exemplo disso é proporcionado pelas intervenções de Arlo (Michael Fassbender), o pai militante de Naoise. Anos atrás, ele entrou fundo na luta do IRA e acabou sumindo de circulação, simulando a própria morte para não ir preso. Um expediente que deixou desassistidos seu filho e sua mulher, Dolores (Simone Kirby), cada um escolhendo um modo de expressar sua mágoa e ressentimento.
De tempos em tempos, Arlo reaparece, clandestino, e nessas participações é que percebe o quanto a luta pela afirmação irlandesa, na geração de seu filho, é pelas palavras, não pela violência. Cada palavra dita em irlandês, proibido pelos dominadores britânicos, é uma bala, é o que Arlo diz. E é isso que seu filho está sendo capaz de usar certeiramente agora.
Personagens estranhos a este núcleo familiar entram com propriedade para criar um contexto mais complexo ao trio principal. Como é o caso de Georgia (Jessica Reynolds), a namorada protestante do católico Liam, a policial durona Ellis (Josie Walker) e a mulher de JJ, Caitlin (Fionnula Flaherty), ativista pela legislação de reconhecimento do irlandês - que acabou acontecendo em 2022. São impagáveis, também, as aparições dos R.R.A.D. (Radical Republicans Against Drugs), ou seja Republicanos Radicais contra as Drogas, que supostamente atuam contra os vícios e o tráfico praticado por Naoise e Liam - outra oportunidade para o filme demolir qualquer tentativa de moralismo ou hipocrisia.