A exportação para a França de uma tradição tão peculiar do Brasil como a lavagem dos degraus de uma igreja católica com a participação do candomblé é a grande façanha retratada no documentário Madeleine à Paris, da diretora Liliane Mutti.
Focalizando a figura do inspirador desse processo, o dançarino baiano radicado em Paris Roberto Chaves, o filme desenvolve uma narrativa envolvente em torno deste transplante cultural/religioso, que enfrentou não poucas dificuldades, inclusive pela diferença de mentalidades entre a França e o Brasil. Embora se tratem de dois países majoritariamente católicos, a França não experimentou a diáspora africana, a escravização e a inusitada formação do sincretismo religioso que se deu no Brasil, simbolizada na Bahia pela lavagem dos degraus da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador, que acontece desde o século 18. Embora, naturalmente, nesse período tenham evoluído os significados em torno dessa celebração inegavelmente popular.
Para que a celebração atravessasse fronteiras, foi preciso um emissário que, em sua própria figura e história, simbolizasse esse sincretismo, o que é o caso de Robertinho Chaves. Nascido em Santo Amaro da Purificação (BA), ele cresceu como uma espécie de afilhado de dona Canô, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, vivendo no cotidiano a fusão entre a devoção ao catolicismo e o culto ao candomblé, que é tão natural a tantos brasileiros, inclusive não só baianos. Radicado em Paris há 30 anos, como dançarino do cabaré Paradis Latin, ele se empenhou em transplantar a tradição da lavagem dos degraus de uma igreja, primeiro na imensa escadaria da Sacré-Coeur, sem pedir autorização ao clero. Pensava em realizar a cerimônia na icônica Notre-Dame, que era próxima de sua casa. Mas descobriu que ali não lhe dariam autorização. Foi quando descobriu a igreja de la Madeleine.
Nessa igreja construída entre os séculos 18 e 19, que ostenta as colunas externas de um templo grego, Robertinho encontrou escuta e acolhimento, tornando-se a sede do evento, que acontece anualmente em setembro. Organizado por uma associação, o cortejo começa na Place de la Repúblique, com muita festa e carnaval, sem esquecer de incorporar manifestações em prol de imigrantes, LGBTs, indígenas, mulheres e outras causas sociais, rumo aos degraus da Madeleine, onde tudo termina em lavagem e bênçãos.
A incorporação de uma tradição que une o sagrado ao profano certamente não ocorre sem oposição, como revela o pároco da igreja, que lida com frequência com críticas internas e externas. Nada que tenha prejudicado a continuidade desta festa de tempero brasileiro na capital francesa, que já dura 22 anos, e que tem seu hino na música Viva Madeleine, composta por Robertinho e Carlinhos Brown.