17/03/2025
Experimental Drama

Aos Pedaços

Eurico Cruz tem duas mulheres, Ana e Anna, cada uma vivendo numa casa idêntica à outra, uma na praia, outra no deserto. Esta peculiar ordem entra em colapso quando Eurico recebe um bilhete anônimo ameaçando-o de morte e torna-se obcecado pela idéia de que é uma de suas mulheres quem deseja matá-lo.

post-ex_7

Vencedor de três prêmios no Festival de Gramado 2020 - direção, fotografia (Pablo Baião) e som (Bernardo Uzeda) -, o filme de Ruy Guerra tem um agudo sentido teatral. Seja em seu intoxicante huis clos, seja em seu preto-e-branco contrastado, seja na amarração dramática nos diálogos entre um trio reduzido de personagens.

Por tudo isso, o clima é de pesadelo, como se o filme se passasse apenas dentro da cabeça atormentada de alguém - que no caso é Eurico Cruz (Emílio de Mello). E bem poderia se tratar apenas disso, já que é seu fragmentado ponto de vista o que conduz as situações, que envolvem suas duas mulheres, sintomaticamente ambas louras e com o mesmo nome, Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Urach). 

Trata-se de um triângulo amoroso aparentemente desprovido de ciúme. As duas mulheres, vivendo em casas idênticas, uma delas numa casa de praia, a outra, numa região desértica, sabem da existência uma da outra e convivem com a situação aparentemente sem conflitos. Quem está descompensado é Eurico, que se tornou obcecado pela idéia de que uma das mulheres quer assassiná-lo a partir do encontro de um misterioso bilhete anônimo.

A sensação de que estamos diante de um filme que mergulha na mente perturbada de Eurico é reforçada pela participação de dois outros estranhos personagens: Eleno (Júlio Adrião), o irmão pastor de Eurico, e uma lagosta enorme num aquário, que tem a voz de Arnaldo Antunes e é uma narradora na história, duas vozes que apenas Eurico parece ouvir. Abandonai toda pretensão de realismo vós que entrais neste pesadelo expressionista.

Como sempre em sua obra, Ruy Guerra propõe um jogo ao espectador e não acha graça nenhuma em facilitar que ele o decifre, embaralhando as peças. Da mesma forma que fez em filmes como Estorvo (1998), a partir do livro homônimo de Chico Buarque de Holanda, e O Veneno da Madrugada (2006), uma de suas várias adaptações de García Márquez, ele cria uma atmosfera de paranoia, interessado mais na vertigem que move os personagens do que em atingir alguma forma de síntese ou resgate. O cineasta é atraído pelo trajeto, não pela chegada, que ele deixa a cargo do espectador que se disponha a acompanhá-lo numa espécie de descida ao inferno.

Como se pode imaginar, nada sugere que esta travessia seja fácil, especialmente para platéias como as atuais, que se desacostumaram de desafios desta ordem, mais comuns talvez no cinema dos anos 1960 e 1970. Do alto de seus 93 anos, Ruy é um viajante de outro tempo que não se motiva a conformar-se com histórias desprovidas de arestas. O que é uma de suas maiores qualidades.

Por outro lado, não há como deixar de observar que este mergulho é eminentemente num universo masculino, que não deixa de ser um tanto tóxico e autorreferente - e não se está dizendo aqui que o filme seja celebratório da nada disso. É apenas uma constatação. Por outro lado, pode-se honestamente ressentir-se de que as duas mulheres, interpretadas por duas atrizes tão talentosas, fiquem um tanto limitadas a esse olhar masculino que as molda mas não complexifica, talvez por não dar-lhes voz o bastante.

 

post