A produção belgo-irlandesa do diretor Tim Mielants foi o filme de abertura do Festival de Berlim 2023, adaptando o romance da autora Clare Keegan, com roteiro de Enda Walsh e produção de Matt Damon e Ben Affleck.
Apesar do protagonista masculino, Bill Furlong (Cillian Murphy, Oscar de melhor ator por Oppenheimer), o filme é uma história que toca profundamente as mulheres - porque são elas as únicas vítimas de uma situação abjeta e antiga, que vigorava na Irlanda ainda naquele ano de 1985. Entre os clientes de Furlong, um comerciante de carvão, está o convento das irmãs Madalenas, em cujos corredores dezenas de mulheres e meninas, por supostamente terem cometido alguma falta moral imperdoável pelos cânones católicos - como engravidar fora do casamento ou prostituir-se - , eram obrigadas a trabalhar, de sol a sol, em virtual regime de servidão, em lavanderias que propiciavam lucro à congregação. Uma vez ali dentro, elas não tinham mais direitos, nem cidadania, nem possibilidade de redenção. Suas próprias famílias as entregavam e concordavam com esse horror.
Adotar para a história o ponto de vista de um homem pode parecer arriscado, ou mesmo errado, aparentemente, mas justifica-se porque este relato não pretende mostrar o interior do convento (o que foi feito em outro filme sobre o tema, Em Nome de Deus, de Peter Mullan, em 2001). Aqui, o que se pretende é colocar em foco a crise moral, ética, de alguém do lado de fora, que tem conhecimento do que se passa entre aquelas paredes e se vê desafiado a tomar partido, a tomar uma atitude, saindo da passividade - e confrontando o risco de comprar briga com o indiscutível poder da Igreja Católica na Irlanda, que ultrapassava e muito a esfera moral.
Esse conflito central é enriquecido por ter sido colocado nas mãos de dois dos maiores atores britânicos, o irlandês Cillian Murphy e a inglesa Emily Watson - que interpreta a irmã Mary, superiora do convento e que mantém um verdadeiro duelo numa longa cena com ele em que fica claro como ela joga seu jogo de persuasão, com pleno conhecimento dos pontos fracos de todos os integrantes da comunidade. Um jogo que Emily, grande atriz que é, sustenta no rosto e na voz. Perfeita.
Mas há também as razões pessoais de Bill para sentir-se tocado pelo drama dessas moças, o que o filme coloca no seu devido tempo. Como foi observado por Emily Watson na coletiva em Berlim: “Bill não é um homem politicamente articulado; o que ele faz não é nenhum tipo de protesto”. O que lhe acontece é uma espécie de processo de supuração, de uma longa e sufocada convivência com uma dor pessoal, que ele projeta nessas mulheres e finalmente deve ter uma saída.
Indagado sobre o preço desse drama coletivo, que envolveu cerca de 10.000 mulheres entre 1926 e 1996 (quando finalmente terminou), Murphy declarou: “Não posso falar pela nação sobre o preço desse drama coletivo. Acho que tudo isso ainda está sendo processado. A arte pode ser um bálsamo nessa ferida”.