Dizer que um filme de Cao Guimarães é muito pessoal é quase chover no molhado. O estilo desse diretor e artista visual mineiro, autor de filmes como Andarilho (2008) e Santino (2024), é estritamente esse, uma mistura de reflexões pessoais e recurso a vários formatos, formando um caleidoscópio seguindo a pista de um tema ou personagem (ns).
No caso deste Amizade, que integrou a seleção do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA) 2023, Cao documenta a própria partida para Montevidéu, em agosto de 2016, numa espécie de exílio que ocorreria dentro de um processo no Brasil que ele mesmo descreve como “desmoronamento de ignorância e desolação”. Esse episódio triste, no entanto, é acompanhado pelo ato solidário de seu amigo, o produtor Beto Magalhães, que espontaneamente se oferece para acompanhá-lo na mudança ao longo dos 2.500 km de estrada que levam à capital uruguaia.
Essa fagulha desperta a alma do filme, uma reflexão sobre a incidência dos amigos na vida cotidiana, que se tornaria mais dramática com a passagem da pandemia - que obrigou contatos a serem mantidos à distância pelo Zoom.
Cao recorre a imagens de décadas atrás, bem antes desse tempo, filmadas numa fazenda mineira sem telefone ou internet, como ele destaca, para alinhavar sequências de memórias de muitas ocasiões, ao longo dos anos. Alguns rostos são reconhecíveis, caso de cineastas como Marcelo Gomes (que assinou com Cao O Homem das Multidões), Cláudio Assis, Eryk Rocha, Lírio Ferreira, e o ator Matheus Nachtergaele - que vive uma espécie de experiência de fauno na floresta diante da câmera.
O filme cria uma espécie de empatia em que a essa sucessão de imagens em tempos e formatos diferentes, podemos sobrepor também as nossas próprias memórias, inclusive de um tempo pandêmico que procurou reinventar formas de contato para superar um distanciamento quase tão corrosivo quanto o vírus em circulação. Ao final, ao enfileirar os retratos 3x4 dos amigos/personagens - alguns não mais vivos hoje -, ao som de Olho d’Água na voz cristalina de Milton Nascimento, o diretor dá materialidade a um álbum de memórias que desafia a fluidez do tempo e registra sua existência como um sonho.