A inteligência e o carisma de Zezé Motta sacudiram a solenidade um tanto cafona que tantas vezes cerca este tipo de homenagem (por mais merecida que seja). Esplendorosa aos 63 anos, com o sorriso largo e franco que sempre a caracterizou, ela relembrou os melhores momentos de sua longa carreira, pontuando uma trajetória vitoriosa em que superar o preconceito contra sua cor não foi de pequena monta. Tendo atuado em cerca de 33 filmes, o mais famoso deles Xica da Silva (76), de Cacá Diegues – o diretor com quem ela fez cinco filmes e que escreveu o texto que a homenageou para o troféu –, ela afirmou que considera como sua maior realização a criação do site Cidan (www.cidan.org.br). O site divulga os atores negros brasileiros e é conhecido até no exterior.
A estrela que estreou na profissão em 1967, na histórica montagem da peça Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda, destacou, numa concorrida coletiva de imprensa ontem à tarde, ter lutado contra o racismo desde sua adolescência. Filha de um músico e professor de violão e de uma costureira, ela sempre morou na Zona Sul carioca, em comunidades onde era a única negra. Por isso, confessou ter sofrido um “processo de embranquecimento”, em que rejeitou seu cabelo, escondendo-o sob uma peruca chanel, de cabelos lisos. Foi com essa peruca que ela viajou aos EUA, na trupe do Teatro de Arena de Augusto Boal, nos anos 60, sendo execrada no Harlem novaiorquino. Começou aí a redescoberta e valorização de sua cor.
Ainda assim, nem sempre as portas se abriram no Brasil. Zezé recorda que, por ser negra, foi recusada para figurar numa fotonovela e numa propaganda de uma loja de tecidos. Mesmo depois do sucesso de Xica da Silva, nem todos os convites foram bons. Como o que recebeu do diretor Zbigniew Ziembinski para atuar num especial da rede Globo em homenagem à escritora Clarice Lispector. Quando soube que seu papel era servir doces numa festa de aniversário, a atriz não aceitou, desafiando conselho do próprio Ziembinski - que lhe disse que não deveria “fechar uma porta”. Zezé, no entanto, teve outro entendimento: “Ou eu virava a mesa naquele momento, ou nunca mais”.
Hoje, ela acha que as coisas estão mudando, como provam a maior presença de atores e modelos negros na publicidade – “antes só nos chamavam para anunciar produtos de limpeza” – e o sucesso de atores como Taís Araújo e Lázaro Ramos. Ela é a favor do sistema de cotas: “Acho que é uma coisa temporária, mas de algum modo o Brasil tem de acertar essas contas atrasadas com o negro”.
Personagens deslocados
Nos dois filmes da noite de terça, a tônica foi o deslocamento dos personagens. No concorrente argentino Nacido y Criado, do diretor Pablo Trapero (do filme Família Rodante), o protagonista é Santiago (Guillermo Pfening), homem que se refugia no frio e desolado ambiente da Patagônia argentina depois de um acidente que provocou uma tragédia em família. Criando um forte contraste entre a primeira parte do filme, em que Santiago leva uma vida confortável e feliz como decorador em Buenos Aires, e a segunda, em que ele mergulha na dor e na autodestruição, Trapero comanda uma narrativa sólida. Faz parte deste chamado “novo cinema argentino” que é capaz de integrar personagens comuns, com os quais o público consegue identificar-se, e a procura de um questionamento existencial. Um estilo que, entre os brasileiros, é dominado com maior maestria por Beto Brant e Karim Aïnouz, por exemplo.
O concorrente brasileiro Deserto Feliz, de Paulo Caldas – que já havia sido mostrado no Festival de Berlim – opta por um caminho um pouco mais radical. Reduz ao mínimo a dramaturgia e confia mais no trabalho de câmera – virtuoso, aliás, mas excessivo – para delinear a trajetória da adolescente Jéssica (Nash Laila). Filha de uma família pobre, em que o pai é traficante de animais, ela é abusada sexualmente por ele – uma cena exasperante e forte. A menina acaba na prostituição, num apartamento com outra menor de idade, em que a única adulta é Pamela (Hermila Guedes).
Jéssica acaba envolvendo-se com Mark (Peter Ketnath), um turista alemão que a leva para Berlim. Não é bem um conto de fadas. A menina tem dificuldades com a língua, o clima, a integração. Em várias cenas, ela procura avistar o horizonte, olhar longe, seu grande desafio. Deserto Feliz é uma grande e fragmentada indagação sobre a identidade e o futuro dessa menina, dessa geração, desse país. É imperfeito – falta dramaturgia – mas sua inquietação é seu grande valor.