É um filme de mulheres. Além de Hermila (Suely é o nome que ela inventa para protagonizar sua rifa), existe a figura magnética de sua avó (Maria Menezes) e sua tia (Zezita Matos), corajosamente homossexual num meio tão tacanho. A cena de discussão entre as três coloca as diferenças de geração com uma propriedade e poder de síntese que dispensa outros discursos. Aliás, a economia e eficiência de meios que o filme usa para contar sua história é uma de suas melhores qualidades. Embora seja uma narrativa enxuta, é permeada por uma câmera quase lírica (de Walter Carvalho), que enuncia uma poesia concreta e despojada.
Hermila é uma personagem intensa em sua recusa de sucumbir de novo à ilusão romântica (representada pelo personagem de João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus), optando pela liberdade a partir de um pragmatismo que adentra a crueldade, nessa decisão pelo auto-rifa – muito lógica, afinal, se se pensar que aos pobres e desvalidos da ordem econômica não resta muito mais do que o próprio corpo. Nesse sentido, o filme é também político.
Assiste-se aqui a um cinema que procura um realismo sem disfarces nem cosmética, encharcado de um humanismo que não tem época e por isso nunca fica datado nem precisa de atualização. A opção de Aïnouz é pelo ser humano e sua circunstância – e só. É quanto basta para compor esta obra fundamental, que no Festival do Rio colheu os prêmios de melhor filme, diretor e atriz.