Poucas estréias na direção de longas são tão acertadas como a da inglesa Andrea Arnold e seu Marcas da Vida, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2006.
Trata-se de um suspense ambientado no mundo comum, no qual o pesadelo de câmeras que o escritor George Orwell criou em seu romance 1984 tornou-se tão banal, que qualquer um pode ser o ditador de seu próprio mundo, tamanha a facilidade em observar a vida alheia.
É nesse contexto que se apresenta Jackie (Katie Dickie), uma operadora de câmeras de segurança que passa o dia enclausurada numa sala. Seu trabalho consiste em observar uma série de monitores ligados a câmeras espalhadas pela cidade de Glasgow. O que essa mulher tanto olha não é tão simples quanto parece. Cercada de aparatos, como teclados e joysticks, ela tem a possibilidade de aproximar, editar e redefinir as imagens capturadas – o que até sugere que ela poderia ser uma cineasta.
Este voyeurismo, aliás, começa na diretora do filme, passa pela personagem e vai desaguar num público que absolve toda a culpa que Jackie não sente por bisbilhotar despudoradamente a vida dos outros. Essa intromissão dela, que a princípio parece inofensiva, mostra-se mais complexa e seus interesses, nada nobres. Muito além de fazer segurança, Jackie é o Big Brother de seu próprio mundo e, nesse conceito, é capaz de criar e aplicar suas próprias leis, fazer justiça com as próprias mãos.
O roteiro, assinado pela diretora, permite que a tensão emerja gradualmente. Assim, Marcas da Vida é um filme que incomoda desde o começo em níveis diferentes. Se em sua primeira hora ele passa uma sensação vaga de desconforto, na segunda metade essa sensação se concretiza e intensifica. É quando Jackie se torna personagem das imagens que capta, não mais observadora. Ela é capaz de agir, colocar seu plano em prática. O público, porém, continua impotente.
A vida de Jackie é solitária e triste. Praticamente não tem amigos, não se interessa por ninguém. Porém, entra na frente de uma das câmeras que observa Clyde (Tony Curan), um homem que certamente está ligado ao passado dela. Essa conexão só será explicada mais tarde.
Clyde vive no condomínio Red Road (que dá o título original ao filme) e é uma espécie de mentor de Stevie (Martin Compston) e sua namorada, April (Natalie Press). Aos poucos, Jackie vai abandonando suas tarefas em frente aos monitores e passa a seguir apenas Clyde. Nesse ponto, Marcas da Vida joga com a questão da ética e poderia também cair no melodrama, dada a relação entre os dois personagens. Mas a diretora é hábil o bastante para manter o clima que até então criou e elevá-la a uma outra potência.
O roteiro de Marcas da Vida surgiu com os dinamarqueses Lone Scherfig (Meu Irmão Quer Se Matar) e Anders Thomas Jensen (Brothers), que deram a alguns cineastas um grupo de personagens e pediram que desenvolvessem roteiros a partir deles. Embora tenha sido inventada pela diretora, a trama deste longa deixa claras algumas influências do cinema dinamarquês contemporâneo e sua urgência de tratar de temas atuais, mais preocupado em fazer investigações emocionais e psicológicas do que políticas.