Moradora com a mãe, Aida, na França, todos os anos a menina Salomé vem passar as férias com a avó em sua aldeia em Trás-os-Montes. Entre ela e a avó há um forte vínculo não só afetivo, como mágico, já que a avó tem poderes mediúnicos e é tida como bruxa. Mas um dia a morte vem abalar esse vínculo, abrindo um conflito na família e na comunidade.
- Por Neusa Barbosa
- 19/07/2023
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Longa de estreia na ficção da diretora franco-portuguesa Cristèle Alves Meira, Alma Viva é uma singular crônica da vida provinciana lusitana e da identidade feminina confinada por ela. Ambientada em pequenas localidades de Trás-os-Montes, focaliza também o dilema da imigração constante a que são levados os moradores locais, fazendo um trânsito permanente com a França que naturaliza a mistura dos dois idiomas dentro das famílias. O filme fez parte da seleção da Semana da Crítica 2023.
A protagonista é a menina Salomé (Lua Michel), que retorna todos os anos da França, onde vive com a mãe, Aida (Jacqueline Conrado), para passar férias com sua avó (Ester Catalão). Esta avó é uma figura polêmica na localidade, ao mesmo tempo admirada e temida por ser considerada bruxa, sempre procurada para fazer intermediações de contatos com espíritos.
O relacionamento entre avó e neta, que é muito próximo e carinhoso, é também permeado por esse aspecto mágico, já que a avó considera Salomé sua herdeira na capacidade mística.
Este relacionamento afetivo e harmonioso entre as duas sofre uma quebra abrupta quando a avó morre, depois de ter comido peixes enviados por uma moradora, com quem ela teve uma séria disputa no passado, em torno de um homem. A menina considera que a outra mulher envenenou sua avó, mas nenhum dos adultos lhe dá ouvidos. Ela, porém, não desistirá de um acerto de contas.
O velório da matriarca será uma oportunidade de confronto entre seus filhos, Fátima (Ana Padrão), que cuidava da mãe, Aida e Joaquim (Arthur Brigas), este outro imigrado da França. Neste contexto, explodem as mágoas que separam as expectativas de uns e de outros, assistidas por um inconformado Dantas (Duarte Pina), o irmão cego que vive na casa e que é apaixonado por música.
Nestes conflitos dentro da família e no enfrentamento dos preconceitos dos moradores quanto às supostas tendências para a feitiçaria da neta da falecida, a diretora investe os seus melhores recursos para compor um retrato vívido de humanidade autêntica, sem medo de mostrar com franqueza a intolerância, o despeito e a vulgaridade. A menina, por sua vez, é capaz de sustentar apenas no rosto uma vasta gama de emoções que contemplam um duro processo de amadurecimento, sendo uma ótima surpresa dentro do filme.
A notável porção final, que inclui o enterro muito adiado, num contexto de incêndios florestais na região, é um acerto extraordinário da jovem diretora - que tem formação de atriz, veio do teatro e tem no currículo documentários e curtas. Essa sequência, envolvendo os membros da família no cemitério, acompanhada mais uma vez de um singular uso da música que pontuou todo o filme, é uma bela catarse, não só de emoções reconciliadas, mas também do renascimento proporcionado pela própria natureza.