19/05/2024
Drama

Zona de Interesse

Vivendo ao lado do campo de concentração de Auschwitz, seu comandante Rudolf Höss (Christian Friedel), sua mulher Hedwig (Sandra Hüller) e filhos levam uma vida que, do seu ponto de vista, é perfeitamente pacata e normal. Quando a mãe da mulher chega para uma visita, ela começa a chocar-se com os ruídos e a fumaça que chegam do campo. No Amazon Prime (a partir de 31/3)

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Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2023 e vencedor de 2 Oscars - melhor filme internacional e som -, este drama esplêndido comprovou a versatilidade do realizador inglês Jonathan Glazer de uma forma talvez inesperada - e no melhor sentido. Diretor de títulos de repercussão, como Sob a Pele e Sexy Beast, Glazer parte do livro homônimo de Martin Amis, para retratar o núcleo familiar de Rudolf Höss (Christian Friedel) e sua mulher, Hedwig (Sandra Hüller, mais uma vez, espetacular, como em Toni Erdmann e Anatomia de uma Queda). 

Eficientíssimo administrador do campo de Auschwitz, Höss tem uma casa-modelo, com amplos e cuidados jardins, bem ao lado do campo - que nunca é mostrado por dentro, apenas se ouvindo seus sons, como gritos, latidos de cães, tiros, além da onipresente fumaça que emana dos fornos que mancha o horizonte. Como em Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese, o filme coloca o foco nos executores dos piores crimes, beneficiando-se deles sem qualquer impedimento ético, construindo seu drama com uma complexidade impecável, como um diagnóstico sobre a continuidade daquilo que Hannah Arendt tão bem definiu como “a banalidade do mal” ao radiografar a naturalidade amoral com que os perpetradores do nazismo planejaram e executaram a eliminação sistemática dos judeus em campos operados com a eficiência de uma sinistra linha de montagem. Novos massacres de nossos tempos, aliás, nos fazem pensar no ressurgimento incessante desse mal. 

O que há de mais inquietante nesse preciso retrato de uma família nazista-modelo é a completa naturalidade com que tanto Höss quanto sua mulher encaram o trabalho dele. Do ponto de vista dele, como uma tarefa que deve ser desempenhada com a maior eficácia possível, de modo a agradar seus superiores e manter sua irresistível ascensão dentro do Partido Nacional Socialista na condução do projeto da “solução final”. Do ponto de vista dela, tudo gira em torno de manter esta casa que é a materialização de seus sonhos - motivo pelo qual ela se recusa terminantemente a mudar-se dali, ainda que ao marido tenha sido oferecida uma transferência que é uma promoção, como coordenador dos campos. Hedwig, porém, nem quer ouvir falar de abandonar sua casa, com seu amplo jardim, horta, piscina e móveis impecáveis, indiferente ao cenário do campo, sempre dentro de seu horizonte, visualmente e também através dos sons e cheiros que chegam, inapelavelmente, como sinais da intensa atividade dos fornos crematórios - um contraste que horrorizou sua mãe, que abreviou repentinamente uma visita que fizera à filha.

O fato de nunca se ver o campo por dentro - exceto numa imagem moderna, na sequência final, que remete a outro sentido - é também um reforço a que a imaginação do espectador complete aquilo que se passava ali e que ninguém pode mais ignorar nos dias de hoje. Esta opção, assim como o magnífico trabalho de som do filme, da autoria de Tarn Willers e Johnnie Burn, e com muita justiça vencedor do Oscar, conjugam-se para criar a atmosfera de um drama que busca sua eloquência nestes não-ditos, muito mais do que poderia proporcionar a veemência de um eventuais reiterações melodramáticas. Fica muito claro, assim, que Zona de Interesse quer engajar seu público acima de tudo numa atitude de reflexão. E tem muitas ferramentas eficientes para fazê-lo. 

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