20/05/2025
Comédia Ficção científica

Pobres criaturas

Depois de trazida de volta à vida pelo dr. Baxter, Bella Baxter está disposta a aprender muito sobre o mundo. Assim, foge com um advogado fanfarrão para viver diversas aventuras e descobrir o real sentido da liberdade. Nos cinemas e no Star+

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Quem é Bella Baxter? A personagem interpretada por Emma Stone, em Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos, é um mistério durante boa parte do tempo. Bonita e com um comportamento errático, ela quer se aventurar, conhecer o mundo, uma vez que sempre viveu fechada na companhia de seu, digamos, criador, Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). 

Ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2023, além de vencer em 4 categorias no Oscar (atriz, figurino, direção de arte e maquiagem/cabelos), o longa é uma fantasia que acompanha a jornada de Bella rumo à autodescoberta. E o fato de que essa passa pela descoberta do sexo ou, como ela mesma descreve, os “saltos furiosos”, é também bastante revelador. 

O roteiro, assinado por Tony McNamara, parte do romance do escocês Alasdair Gray, publicado em 1992 e considerado um marco na literatura pós-moderna por conta de sua releitura de Frankenstein por um prisma feminino, combinando diversos gêneros, entre eles a sátira e o pastiche. Lanthimos, que também é conhecido por sua inventividade, encontrou no material a base perfeita para um filme que segue a sua tradição. 

Bella é uma mulher adulta com um comportamento infantil. Seu corpo foi encontrado jogado à margem do Tâmisa, na Inglaterra vitoriana, pelo médico e professor Godwin Baxter, que a reanimou, trazendo-a de volta à vida depois de ter se suicidado. Ela tem uma mente infantil, em desenvolvimento, por isso tudo é novidade e descoberta. Seu apetite, por isso, é incontrolável e gigantesco. Há algo de terno e, ao mesmo tempo, selvagem nesse comportamento, que Emma Stone mostra com vigor num verdadeiro tour de force

A jovem é prometida em casamento a um aluno de seu “pai”, Max McCandles (Ramy Youssef). Porém, ao conhecer o advogado que redigiu o contrato de núpcias, Duncan Wedderburn (Ruffalo), acaba se apaixonando e saindo de casa, não sem antes avisar Baxter e o noivo. E é com o advogado que descobrirá os “saltos furiosos”, logo chegando à brilhante conclusão: “Como as pessoas não fazem isso o tempo todo?”. A protagonista é marcada por essa sinceridade, por um comportamento sem amarras sociais ou uma moral burguesa. Faz e diz o que lhe vem à cabeça. 

O século XIX do filme revela um toque de retrô-futurista, uma combinação do passado com elementos que parecem anunciar um período de avanço na tecnologia - driblar a morte é apenas um deles. Em sua viagem, Bella e Wedderburn passam por lugares como Lisboa e Alexandria. No navio, por exemplo, conhece uma senhora boêmia, Martha (Hanna Schygulla, marcante mesmo em poucas cenas), e seu companheiro de viagem, Harry (Jerrod Carmichael).

Lanthimos toma o amadurecimento de Bella de forma quase literal. Há questões dúbias no filme, pois relacionar-se sexualmente com uma pessoa com corpo de adulta mas mente de criança é pedofilia? Ou o empoderamento da protagonista vem por meio dos abusos físicos e emocionais que sofre nas mãos de Wedderburn? Ou mesmo aqueles perpetrados pelo dr. Godwin Baxter, que se apossou do corpo de uma mulher morta para fazer dela um experimento?

A questão é que, no mundo de Bella, os homens são tóxicos, mesmo aqueles que, aparentemente não o sejam. Mas só no mundo de Bella? Pobres Criaturas, como o melhor da sátira, exagera em suas situações para escancarar as mazelas de seu tempo. A ingenuidade da protagonista é, na verdade, também uma forma de sagacidade que a ajuda a encontrar saídas. A certa altura, em Paris, Bella se torna prostituta num bordel, fazendo amizade com uma colega marxista, Toinette (Suzy Bemba). E quando Wedderburn a agride verbalmente, ela rebate desafiando-o: “Nós somos nosso próprio meio de produção.”

Técnica e esteticamente, Pobres Criaturas é impressionante em sua artificialidade proposital, que resulta em belas imagens com fotografia e desenho de produção ricos em sua criatividade. E, como é comum nos filmes de Lanthimos, este causa estranhamentos, nem tanto num sentido brechtiano, pois ele nunca desfaz a ilusão do realismo, mas ao deslocar elementos comuns para um lugar incomum – a começar por Bella. O filme torna a jornada dela uma metáfora para a relação da mulher com a modernidade. O avanço tecnológico e social também abrirá, mais cedo ou mais tarde, as portas para o feminismo, para um desejo inabalável de igualdade. E que os “saltos furiosos” sejam um dos meios para se atingir isso torna a personagem ainda mais intrigante. 

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