08/02/2025
Drama Policial Crime

Misericórdia

Jérémie volta à cidadezinha de St. Martial, onde morou por muito tempo, para o enterro de seu antigo mentor, o padeiro Jean-Pierre Rigal. Seu retorno provoca incômodo a várias pessoas, além de despertar desejos ocultos. A tensão levará a um crime. Nos cinemas.

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Mostrando, no início do filme, um carro que percorre as vielas estreitas de uma cidadezinha, o diretor francês Alain Guiraudie já sinaliza estar conduzindo seus espectadores a um labirinto em que desejo e culpa, mas não necessariamente castigo, norteiam o ritmo das pulsões. 

A cidadezinha é St. Martial, para onde se dirige o jovem Jérémie (Félix Kysyl). Anos atrás, ele também ali vivia. Agora, voltou para comparecer ao enterro de seu mentor, o padeiro da cidade, Jean-Pierre Rigal (Serge Richard). 

A acolhida do forasteiro já sinaliza alguns estranhamentos. Jérémie é bem-recebido pela viúva, Martine (Catherine Frot), que aliás o convidara. Mas há uma visível hostilidade no filho dela, Vincent (Jean-Baptiste Durand), que aos poucos contamina as emoções deste pequeno círculo.

Próximo da cidadezinha, um bosque aonde todos vão colher os apreciados cogumelos locais torna-se o território pantanoso onde emoções nem sempre admitidas à luz do dia eventualmente explodem - como no lago de O Estranho no Lago (2016), filme anterior de Guiraudie que lhe deu o prêmio de melhor diretor na mostra Un Certain Regard de Cannes.

Solitária pela viuvez, Martine estimula Jérémie a permanecer na cidade, hospedado em sua casa. E isto é motivo de ciúme por parte da Vincent, embora fique claro em breve que não se esgota aí seu incômodo. Guiraudie é um diretor especialmente eficaz na maneira de revelar os desejos reprimidos, particularmente os sexuais, que permeiam a atmosfera deste pequeno lugar onde a própria proximidade das casas impede a manutenção dos segredos. Aí o bosque mostra-se um escape, ainda que seja tão ostensivamente frequentado.

Outros dois homens formam elos nesta trama. Walter (David Ayala), que ao ser visitado por Jérémie provoca também ciúme de Vincent, e o padre Philippe (Jacques Develay), que parece onipresente, surgindo a todo momento, onde menos se espera. O padre, aliás, é o personagem mais intrigante deste filme policial com tempero francês, o mais bem-realizado do diretor, que se mostra capaz de um encadeamento sutil e de uma tensão crescente em torno de um crime, mantendo o interesse até o fim.

Mais do que uma punição, o que o enredo constrói é uma intrincada rede de acomodações que se forma a partir do desaparecimento de Vincent. Os espectadores conhecem seu destino, mas a cidadezinha, não. O que manterá o interesse, portanto, é a maneira como o culpado e os demais habitantes reagem e se acomodam diante do mistério, sem que a ideia de justiça e punição incontornável nos suspenses norte-americanos se apresente entre as opções. Há crime e até castigo, mas a rigor ele não se apresenta nos mesmos moldes dos filmes de tribunal. Se há um tribunal, aqui, ele é fora das instituições, a partir de uma moral muito própria, que procura outras satisfações diferentes da consciência. 

Para a eficiência deste jogo, é preciso intérpretes à altura e Félix Kysyl, Catherine Frot e particularmente Jacques Develay são capazes de sustentá-lo da melhor maneira. A grande cena é da inversão de papéis no confessionário da igreja, em que o diálogo mantido pelo padre é a melhor exposição das intenções deste instigante conto amoral. Guiraudie, afinal, mostra-se um digno herdeiro de Claude Chabrol.

 

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