14/02/2025
Comédia Musical Drama

Emilia Pérez

Rita é uma jovem advogada que luta para manter-se e não é valorizada no escritório onde trabalha. Um dia, ela recebe uma proposta misteriosa e tentadora: resolver todos os negócios de Manitas, um poderoso chefão de cartel mexicano, que depois desaparecerá de circulação. O plano dele é transformar-se numa mulher. Nos cinemas.

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A esta altura, é impossível falar de Emilia Pérez dissociando o filme da imensa esteira de polêmicas que se formou em torno dele - a pior delas, a descoberta de uma série de nem tão antigos posts racistas da protagonista, a atriz espanhola Karla Sofía Gascón.

Nada disso se poderia imaginar na estreia mundial do filme, produzido pela gigante Netflix, no Festival de Cannes 2024, de onde saiu consagrado por um Prêmio do Júri e a premiação conjunta de suas quatro atrizes (Karla, Zoe Saldaña, Selena Gómez e Adriana Paz). Os prêmios de Cannes na época pareciam sepultar as ínúmeras dúvidas que cercavam a produção multinacional, filmada na França, por um diretor francês, Jacques Audiard, que, apesar de premiado, nunca havia dirigido um musical, além de abordar temas polêmicos mexicanos sem incorporar nacionais daquele país em sua equipe e elenco - com a solitária exceção de Adriana Paz. 

Mas não foi o que se viu. 

Do México vieram, e continuam chegando, as maiores críticas. Os mexicanos em geral rejeitaram violentamente sua representação no filme, apesar da relativa licença a ser concedida a um musical. Nós brasileiros entendemos o sentimento - afinal, quantas vezes nos ressentimos de retratos folclorizados de nosso país em filmes assinados por estrangeiros? Ainda assim, Emilia Pérez poderia passar mais ou menos ileso pela temporada de premiações se não fossem os posts inaceitáveis de Karla Sofía, apesar de terem sido apagados e das reiteradas desculpas da atriz. A imagem do filme, neste momento, ficou inapelavelmente contaminada por esse contexto. Sem contar as suspeitas levianas que Karla levantou de que a equipe de Fernanda Torres estaria por trás de posts de haters de que ela foi alvo nas redes - garantindo à atriz espanhola o ódio eterno de parte do público brasileiro, empenhado como nunca na defesa de Fernandinha. 

Procurando falar especificamente do filme: trata-se de um musical bem-produzido, com uma dramaturgia que sustenta bem a música e não se pode negar que as atuações de Karla, Zoe e Adriana estejam excelentes - Selena Gómez certamente destoa e já se falou suficientemente disto. Karla Sofía segura bem o papel duplo, na primeira metade do chefão de cartel Manitas, na segunda, como Emilia Pérez, sua versão mulher - uma transformação evidentemente ousada mas que funciona no contexto fantasioso de um musical, tendo em Zoe Saldaña o apoio, como a advogada Rita, que abre os caminhos para que tudo funcione na nova vida do ex-traficante. 

Mais complicada é a relativa transformação moral de Emilia. Antes decidida a deixar para trás sua antiga vida, incluindo a mulher, Jessi (Selena), e os dois filhos, ela tem uma reversão de sentimentos, retomando o controle da vida dos três agora sob a identidade de uma prima distante do supostamente falecido Manitas. Uma recaída que até se pode aceitar numa pessoa tão acostumada a dominar tudo e todos de acordo com seus desejos. Mais difícil de acreditar é que esta pessoa repentinamente se interesse pelos milhares de desaparecidos que a guerra entre cartéis provoca há anos no México e se torne a líder de uma ONG de direitos humanos encarregada de ajudar as famílias a encontrá-los.

Este aspecto causou, com razão, a maior parte das críticas mexicanas, já que se trata de um tema sensível, cuja complexidade dificilmente caberia num filme deste gênero. Fosse o diretor latino-americano ou minimamente conhecedor das questões do continente - o que Audiard reconheceu sinceramente não ser -, tudo isso poderia ter encontrado caminhos melhores. Afinal, não faltam diretores de primeiro time no México, lembrando apenas de Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro e Alejandro González Iñárritu. 

Finalmente, apesar das qualidades técnicas da produção, do desempenho das atrizes, do Globo de Ouro já conquistado como melhor filme musical/comédia, das volumosas 13 indicações ao Oscar e da campanha milionária da Netflix, Emilia Pérez dificilmente deverá ter a consagração estrondosa que se esperava a partir de Cannes. 

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