Vitória, de Andrucha Waddington, trata de uma heroína brasileira. Recria a vida de Joana da Paz (1925-2023), uma octogenária moradora de Copacabana que se fartou de ter sua vida perturbada por tiroteios e o cometimento de crimes à luz do dia debaixo de sua janela e tomou uma atitude. Comprou uma câmera e filmou várias ocorrências que vislumbrava atrás de sua persiana, criando com isso uma pressão para que as autoridades acabassem com aquilo. Sua atitude levou realmente a dezenas de prisões. Mas acontece que havia também autoridades envolvidas numa criminosa troca de favores com barões do tráfico e dona Joana teve que mudar de identidade e de endereço para sempre, para não ser morta por nenhum dos lados.
No roteiro de Paula Fiuza, a partir do livro do jornalista Fábio Gusmão, que colheu a história de dona Joana, a protagonista se transforma em Nina (Fernanda Montenegro), uma ex-doméstica e massoterapeuta autodidata que vive solitária em seu apartamento. Do alto de seus 95 anos, dona Fernanda, como a chama o cineasta Walter Salles, sabe como poucas atrizes ter uma presença, existindo na tela a partir de muito pouco. Ela combina a fragilidade e a força de sua personagem, uma velha senhora solitária a quem a vida deu quase nada - mas a esse pouco ela se agarra e até divide. Como faz ao proteger um menino da comunidade próxima, Marcinho (Thawan Lucas), a quem ela oferece lanches, alguns trocados e muitos conselhos.
O filme estabelece o contraste entre essa vida modesta e ética de Nina, testemunhando com indignação crescente uma enxurrada de crimes a céu aberto. Não raro, ela e seus vizinhos não conseguem dormir por conta dos tiroteios ao lado. Também não é incomum que um desses tiros despedace as vidraças ou até fira um dos moradores, como acontece com a vizinha de Nina, Bibiana (Linn da Quebrada).
O que há de mais notável em Nina é sua coragem. Ela não se conforma com a acomodação de seus vizinhos, nem da polícia, nem do batalhão do exército que ela procura, munida de uma série de fitas que filmou de sua janela. Ela não aceita essa indiferença diante de um mundo que se brutaliza aceleradamente e onde gente como ela não pode viver, nem caber.
Nessa cruzada a que não falta um toque de ingenuidade, Nina encontra uma rara escuta no jornalista Flávio Godoy (Alan Rocha). Repórter policial que fareja suas pautas em delegacias e quartéis, ele é o único a prestar atenção naquela figura frágil que insiste em bater às portas sem ser ouvida. E é essa a única aliança que pode abrir portas para resolver uma situação insustentável, ainda que implique tantos riscos tanto para Nina quanto para o jornalista.
Com sua carga de drama e toques de policial, o filme cria um caminho para que o espectador se identifique com esta heroína simples, com cujos princípios só se pode solidarizar. Sobra, é claro, o espaço para a pergunta: como é que uma pessoa dessas pode simplesmente existir? Onde ela foi buscar tanta integridade?
Projeto que começou nas mãos de Breno Silveira, que morreu em 2022, o filme encontra em Andrucha um diretor que conforma o tom à sobriedade que a história exige, trabalhando novamente com sua sogra, Fernanda Montenegro, 20 anos depois de Casa de Areia - onde ela contracenou com a filha Fernandinha, hoje coberta de glória internacional.
Há quem tenha objetado ao fato que a personagem real era uma mulher negra, o que suscitaria a necessidade de uma atriz também negra. Produtores responderam que, à época do início das filmagens, mudanças como essa visariam inclusive proteger a identificação de dona Joana, que vivia há 17 anos sob identidade nova, sob o nome de Vitória - e teria ficado muito feliz em ver-se interpretada por Fernanda Montenegro. O jornalista, Fábio Gusmão, por sua vez, é branco e interpretado na tela por um ator negro, Alan Rocha.