21/03/2025

Empoderamento e dependência são temas no Cine PE

Recife- A segunda noite do Cine PE focalizou temas interligados, como os conflitos entre privilégios e dependências, discutindo também a luta de pessoas deficientes para ocupar espaços mais amplos do que os que costumam ser-lhe habitualmente destinados.

Assim, mostrou-se muito positiva a escolha da curadoria na programação, que uniu o documentário gaúcho
Memórias de um Esclerosado , de Thais Fernandes e Rafael Corrêa, e curtas como outro gaúcho, Zagêro, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, Dependências, de Luísa Arraes (RJ), Solange Não Veio Hoje, de Hilda Lopes e Klaus Hastenreiter (BA), e a animação pernambucana Nova Aurora, de Victor Jiménez.

Um grande mérito do longa da noite, Memórias de um Esclerosado (foto), foi focalizar a história do co-diretor Rafael Corrêa, um cartunista premiado que enfrenta a esclerose múltipla desde 2010, a partir de uma perspectiva não-piedosa. Dando ênfase a um enfrentamento diário da doença que busca a afirmação e o otimismo mas não descuida do realismo nem minimiza a enormidade da postura de seu protagonista.
O tamanho dessa dificuldade não ficou de fora nem mesmo da exibição do filme no Recife, já que o cartunista, que se movimenta em cadeira de rodas, não pôde subir ao palco do Teatro do Parque para apresentar seu filme porque o local não dispõe de uma rampa de acesso - ele o fez, ao lado da diretora Thais Fernandes, diante do palco e da platéia.

De todo modo, o filme se vale de inúmeras técnicas, inclusive a animação de diversas tirinhas de autoria de Corrêa, para ilustrar sua trajetória, sua imaginação, seus sonhos, instaurando um lado fantástico que valoriza muito toda a história.

Um exemplo expressivo é a introdução do personagem de um sapo antropomorfizado, simbolizando uma traumática história de culpa da infância do desenhista, e que se insere no relato de uma forma particularmente poética na bela sequência final do filme - cujo conceito foi inventado pelo próprio Corrêa.

A co-diretora comentou na coletiva de hoje (8) que o projeto do filme começou a ser desenvolvido em 2015. Ela e Corrêa já se conheciam, eram amigos, e tiveram a idéia, que só obteve financiamento em 2019, sendo realizada ao longo da pandemia e só sendo concluída agora. Ela observa que foi importante, nesse processo, a passagem por dois laboratórios, o Doc Lab e o Doc SP, e fundamental o conselho de um tutor do projeto, o documentarista argentino Andrés di Tella, no sentido de que não fizessem um “documentário de superação”. Esse objetivo, os dois diretores cumpriram lindamente, assinando um filme cheio de verdade, emoção, humor e enfrentamento de um problema que não vai ser superado, o que não impede que nessa trajetória de vida haja tantas vivências positivas e compartilháveis com quem tem o prazer de assistir ao filme.

Lugares de poder

Dois outros curtas discutiram a luta de pessoas deficientes para ocuparem maiores espaços, caso do pernambucano Nova Aurora, uma animação em técnica de rotoscopia que destaca personagens surdas, e o gaúcho Zagêro, em que o co-diretor Victor Di Marco se coloca também diante da câmera para tematizar de maneira bastante criativa a discriminação contra pessoas deficientes.

Resgatando a memória de um tempo ainda recente em que pessoas deficientes eram segregadas em instituições, no cenário das ruínas de um hospital psiquiátrico de Porto Alegre, Victor executa performances teatrais com monólogos, música e dança para resgatar a individualidade, desejo de autonomia e a sexualidade a que PCDs (pessoas com deficiência) têm tanto direito quanto quaisquer outras.

Outros dois curtas abordaram um outro tipo de dependência, esta social, de pessoas de classe social mais alta em relação aos seus empregados domésticos, entrando em parafuso em situações em que eles os abandonam. Um deles foi Dependências, assinado pela atriz Luísa Arraes, a intérprete de Grande Sertão, e que retrata o colapso na casa de uma família de classe média alta que recebe o chefe de uma das integrantes (Thomás Aquino, de Bacurau) e falha miseravelmente em sua recepção porque sua empregada, Dadá, simplesmente desapareceu. A história toda se desenrola em ritmo crescentemente absurdo, com os integrantes da família totalmente perdidos no manejo dos mais elementares objetos da casa e da cozinha.

Esta situação se repete numa chave menos radical no curta baiano Solange Não Veio Hoje. Com a ausência repentina da empregada da casa, o patrão, Alan (Marcelo Praddo), um homem de meia-idade acostumado desde a infância a ser sempre servido e não mexer uma palha, tem seu cotidiano drasticamente transformado. Ele é incapaz de cozinhar, lavar pratos, lavar a própria roupa e outras tarefas e sua casa adquire a aparência de um lugar de pesadelo, em que os próprios eletrodomésticos adquirem um aspecto ameaçador.

Em ambos os curtas, infiltra-se claramente um aspecto sócio-político, especialmente no curta baiano, em que transparecem as possibilidades de ascensão social, portanto, de escolha, de profissionais como a doméstica e o porteiro do prédio onde vive Alan.