Filme de Walter Salles traz emoção e reflexão a Veneza
- Por Neusa Barbosa, de Veneza
- 01/09/2024
- Tempo de leitura 4 minutos
Veneza - Neste primeiro domingo do festival, setembro começou com a première mundial de Ainda Estou Aqui, o drama que recoloca Walter Salles em Veneza 24 depois de ter competido pela primeira vez ao Leão de Ouro com Abril Despedaçado.
O novo filme adapta o romance homônimo de 2015 de Marcelo Rubens Paiva, mergulhando na tragédia de sua família, a prisão ilegal e o desaparecimento de seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, que mudou drasticamente a trajetória de um clã unido, alegre, intelectualizado, bem-posto socialmente depois de mergulhar no pesadelo da repressão da ditadura militar em 1971, no governo Médici.
O título do filme e do livro disparam seus múltiplos significados. O primeiro e mais evidente deles que é Eunice Paiva (Fernanda Torres) aquela que fica encarregada de uma família de cinco filhos, privada de seu marido e pai.
Salles constrói um filme sóbrio, de narrativa clássica e elegante, dividindo a história da família claramente em dois momentos. O primeiro deles, antes da tragédia, na casa familiar no Leblon, em que a praia era praticamente o quintal das crianças Paiva e a vida era despreocupada e lúdica, num Rio de Janeiro colorido mas que paulatinamente se tornava mais sombrio, como o resto do País, com o endurecimento do regime.
O segundo momento ocorre depois da prisão de Rubens Paiva (Selton Mello), em sua casa, diante da mulher e dos filhos, sem que eles saibam que ele nunca mais irá voltar. Eunice, que era uma mãe e dona-de-casa, também foi brevemente presa, logo depois, junto com a filha Eliana, uma adolescente de 16 anos, mas ambas foram liberadas. Começa aí o segundo capítulo da vida de uma Eunice que se reinventa, assume o comando da família sem poder contar nem mesmo com os recursos bancários, porque não tem uma prova oficial da morte do marido. É uma viúva sem corpo, sem funeral, que recebe apenas a angústia e a incerteza como luto e que encontra energia para formar-se advogada, aos 48 anos, tornando-se uma referência em direitos humanos e indígenas já nos anos 1980.
Coletiva
Na concorrida coletiva de imprensa de hoje à tarde, Walter Salles contou ter conhecido Marcelo Rubens Paiva quando tinha 13 anos. Assim, teve um contato direto com essa família que agora é objeto de um filme que levou cerca de 7 anos para sair do papel. Salles afirmou que seu interesse nessa história foi “a ferida dessa família, causada por um ato de violência, numa jornada que se mistura com a história do país”.
O diretor observou acreditar que o cinema é “um instrumento contra o esquecimento”. Mas destacou que, quando começou a filmar, não imaginava que a história se tornaria tão relevante para a realidade do momento. “Nunca pensei que minha geração veria o ressurgimento do fascismo como agora. Houve uma convergência entre o que contávamos e a História que ecoava nas ruas”.
Marcelo Rubens Paiva, por sua vez, concordou que “era importante trazer essa história num momento em que a democracia está em risco em todo o mundo”.
Fernanda Torres frisou que tentaram “ser fiéis a essa mulher, que tinha uma vida utópica, que de algum modo refletia o país da Bossa Nova, do modernismo, da Tropicália, e tudo foi mutado por um golpe. Assim, ela teve que se reinventar, sem nunca ter manifestado a vontade de ser uma figura pública. Mas era uma heroína”.
Fernanda completou, dizendo que Eunice “não queria chorar em público nem que seus filhos fossem vistos como vítimas”. No filme, destacou que “evitaram melodramas” mas admitiu ter chorado em duas cenas, que não especificou quais foram, mas disse a Walter: “Você cortou!”. O que, certamente contribui para a sobriedade de um filme cuja dimensão dramática fala por si, assim como a sua urgência.
Selton Mello acrescentou considerar este filme “necessário” e que foi um desafio interpretar a sua fase luminosa sabendo o final da história, pois ele não podia demonstrar nenhuma emoção nesse sentido. Frisou ter procurado entrar no personagem de Rubens Paiva “de maneira respeitosa”.
Produtora do filme, Daniela Thomas contou ter insistido muito com Walter para que ele abraçasse o projeto e que ela mesma tem uma conexão bastante próxima desta história. “Meu pai (o cartunista Ziraldo, falecido em abril) foi levado preso três vezes quando eu tinha 10 anos. Uma vez, ficou desaparecido por três meses e a gente não tinha meios de saber onde ele estava. Nos davam pistas falsas. Qualquer família fica seriamente abalada numa situação assim, quando alguém se dá o direito de levar uma pessoa simplesmente por discordar do que ela pensa”!.