21/03/2025
Drama Documentário

O beijo no asfalto

Este filme pouco convencional combina cenas de um grupo de atores se preparando para filmar uma adaptação da peça "O Beijo no Asfalto" e a própria adaptação em si.

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Murilo Benício estreia na direção em um filme pouco comum – uma mescla de documentário, making of e encenação (para o cinema) da peça O Beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Poderia ser mais uma adaptação cinematográfica do texto de 1960 – seria a terceira, sendo uma de 1964, e outra, de 1981 – mas o diretor opta por começar pelas origens da obra: o teatro.
 
Em uma mesa redonda, um grupo de atrizes e atores leem a peça, como se participassem de ensaios para uma peça, sob o comando do diretor Amir Hadad. É um trabalho impressionante pois, ao lado do elenco, ele disseca o texto, trazendo à tona a relevância de O Beijo no asfalto. O ponto de partida da peça é o atropelamento de um homem no centro do Rio de Janeiro. O moribundo ganha um beijo derradeiro de Arandir (Lázaro Ramos), e isso é fotografado. Um repórter sensacionalista (Otávio Müller) presencia a cena.
 
Com uma fotografia em preto-e-branco, do veterano Walter Carvalho, o longa passa seus primeiros minutos enclausurado na mesa, com a leitura e discussão das primeiras cenas. Aos poucos, primeiro de maneira tímida, depois segura, vai ganhando a tela como cinema mesmo. A tragédia carioca tipicamente rodrigueana constrói-se na frente da câmera. Aprígio (Stênio Garcia) é sogro de Arandir, presenciou o beijo, e logo procura sua filha, Selminha (Débora Falabella), para prepará-la: o marido está na delegacia, prestando esclarecimentos, afinal é testemunha de uma morte.
 
O circo está armado na delegacia. O repórter, Amado Ribeiro (inspirado numa figura homônima e real), instiga o delegado (Augusto Madeira, como sempre, ótimo) a questionar sobre o beijo. Em casa, Selminha e a irmã mais nova, Dália (Luiza Tiso), estão preocupadas com Arandir, mas sabem que o beijo foi puro gesto de generosidade com uma pessoa à beira da morte.
 
O texto talvez seja o ápice daquilo que se convencionou chamar de rodigueano. Estão aqui todas as obsessões dramatúrgicas do escritor: paixões reprimidas (não raro homossexuais), irmãs apaixonadas pelo mesmo homem, delegados e repórteres pouco idôneos, a vida suburbana claustrofóbica. Benício, que também assina o roteiro, explora esses elementos com cuidado para que seu filme não se transforme num desfile das aflições que consomem a humanidade.
 
A peça foi escrita especialmente para o Teatro dos Sete – do qual Fernanda Montenegro fez parte, interpretando Selminha na montagem original. Aqui, a atriz participa como uma vizinha fofoqueira e maldosa, que chega na casa da protagonista horrorizada com o jornal em punho. Fora trazer as lembranças da estreia de O Beijo no asfalto nos palcos – pessoas saíam no meio da apresentação chamando a peça de indecente –, é ela quem mais atenta para a atualidade do texto. Estão em cena (mesmo que na época não tivesse esse nome) questões como fake news e homofobia – problemas que, independente do termo com que são chamados, persistem na cultura brasileira. 
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