Vencedor do prêmio de roteiro no mais recente Festival de Veneza (assinado por Murilo Hauser e Heitor Lorega) e representante brasileiro a uma indicação no Oscar em língua estrangeira, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, adapta o romance homônimo de 2015 de Marcelo Rubens Paiva. Cumpre assim, uma imprescindível tarefa inconclusa na cultura brasileira de resgatar memórias sombrias da ditadura civil-militar de 1964, mergulhando na tragédia da família Paiva a partir da prisão ilegal e do desaparecimento do pai de Marcelo, o ex-deputado Rubens Paiva. Uma tragédia que mudou drasticamente a trajetória de um clã unido, alegre, intelectualizado, bem-posto socialmente depois de afundar no pesadelo da repressão da ditadura militar em 1971, no governo Médici.
O título do filme e do livro disparam seus múltiplos significados, o primeiro e mais evidente deles que é Eunice Paiva (Fernanda Torres) aquela que fica encarregada de uma família de cinco filhos, privada de seu marido e pai.
Salles, que conviveu com a família quando ainda adolescente, constrói um filme sóbrio, de narrativa clássica e elegante, dividindo a história dos Paiva claramente em dois momentos. O primeiro deles, antes da tragédia, na casa familiar no Leblon, em que a praia era praticamente o quintal das crianças do clã e a vida era despreocupada e lúdica, num Rio de Janeiro colorido mas que paulatinamente se tornava mais sombrio, como o resto do País, com o endurecimento do regime.
O segundo momento ocorre depois da prisão de Rubens Paiva (Selton Mello), em sua casa, diante da mulher e dos filhos, sem que eles saibam que ele nunca mais irá voltar. Eunice, que era uma mãe e dona-de-casa, também foi brevemente presa, logo depois, junto com a filha Eliana, uma adolescente de 16 anos, mas ambas foram liberadas. Começa aí o segundo capítulo da vida de uma Eunice que se reinventa, assume o comando da família sem poder contar nem mesmo com os recursos bancários, porque não tem uma prova oficial da morte do marido. É uma viúva sem corpo, sem funeral, que recebe apenas a angústia e a incerteza como luto e que encontra energia para formar-se advogada, aos 48 anos, tornando-se uma referência em direitos humanos e indígenas já nos anos 1980.
Não à toa, Fernanda Torres vem colhendo premiações em diversos festivais e tornando-se uma aposta inclusive a uma indicação ao Oscar de melhor atriz.
Venham ou não essas indicações, Ainda Estou Aqui é um filme fadado a fazer história, por tudo que traz à luz, por tudo que recorda, por tudo que investiga, cutuca, por isso, emociona e indigna na mesma medida. Mas é um indiscutível documento para que o País se olhe no espelho, mais uma vez, e enfrente suas mazelas passadas e redescubra suas heroínas. Eunice Paiva é certamente uma das maiores.
Leia entrevista com Marcelo Rubens Paiva
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