16/03/2025

Festival retrata aspectos inusitados da realidade contemporânea

Filme de abertura (SP)

O Competidor

Assinado pela documentarista britânica Clair Titley, este dilacerante documentário revela, entre outras coisas, que um pioneiro reality show surgiu, na verdade, no Japão - e não na Holanda, como até agora se supunha. Mas esse nem é o objetivo do filme, nem seu maior impacto, que decorre muito mais de sua capacidade de despertar reflexões sobre este bizarro fenômeno de exposição que tomou as televisões de todo o mundo, inclusive no Brasil.
Corria o ano de 1998 quando o jovem Tomoaki Hamatsu, conhecido pelo nome artístico Nabusi (em português, “berinjela”) troca sua terra natal, Fukushima, por Tóquio, onde pretende iniciar uma carreira no ramo do entretenimento. É escolhido por sorteio para protagonizar o mais novo projeto de um poderoso produtor de TV, Toshio Tshuchiya, que prevê que o rapaz permaneça sozinho, nu, num pequeno apartamento, diante das câmeras, que acompanharão seu cotidiano - uma verdadeira jornada de sobrevivência, já que ele terá que obter, vencendo concursos realizados por revistas, tudo o que necessita para viver, incluindo comida, até atingir o valor de um milhão de ienes.

O programa, “Denpa Shonen - A Life in Prizes”, torna-se um fenômeno de audiência, atingindo cerca de 15 milhões de espectadores, que ficam hipnotizados por Nabusi, um cômico natural que faz graça de suas atribulações, sem saber que todas as suas imagens estão indo para o ar. Esta e outras manipulações do produtor são objeto de análise hoje, por parte de um Nabusi maduro e um Tsuchiya impressionantemente sincero e, eventualmente, autocrítico.

Uma contribuição importante vem dos depoimentos da jornalista Juliet Hindell, correspondente da BBC no Japão na época do programa, e que traz reflexões preciosas sobre o sucesso de audiência, que não tardaria a ter imitadores (não terá sido coincidência que o primeiro BBB, no canal holandês Veronica TV, tenha surgido em 1999, adaptando o formato com outras regras, mas cujo espírito é essencialmente o mesmo).

O documentário deixa muito espaço para que o próprio espectador analise as próprias emoções diante do espetáculo sinistramente cômico, tantas vezes, patético e até triste, deste jovem desgrenhado, magro e nu confinado ao pequeno apartamento - sendo suas partes íntimas cobertas por um emoji de berinjela, aludindo ao nome artístico, tirado do apelido de infância, quando ele sofria bullying devido ao formato do rosto, comprido. O que o filme propõe, afinal, é uma jornada de reflexão e reumanização, tal qual a empreendida pelo próprio Nabusi ao final do programa. (Neusa Barbosa)

Sessões

Rio de Janeiro

Estação Net de Cinema Botafogo 1 - 5/4/2024 às 20h30

São Paulo

Espaço Itaú de Cinema Augusta - 5/4/2024 às 20h30

Inutensílios

O documentário já chama a atenção pelo seu título inusitado, uma espécie de neologismo que vai contra o pragmatismo da necessidade utilitária capitalista. Algo ser inútil é, e si, uma forma de existência, existir apenas para servir para algo.
Bruno Jorge, o diretor desse documentário, abandonou a vida em São Paulo e se mudou com a mulher e o filho pequeno para a Serra da Mantiqueira, numa vila rural.
Ao saber da segunda gravidez de sua companheira, resolveu que o filme teria um fim, mas não uma finalidade. Essa ideia de uma livre associação, de um fluxo guiado pelo acaso do presente, marca o documentário. O fazer documental se torna uma questão central, encontrar a forma ideal de algo que ele não sabe como deve ou poderia ser.

É uma proposta, ou mesmo um convite, que ele faz ao público, que deve entrar em sua cadência temporal, que se rebela contra a máxima “tempo é dinheiro”. Encontramos assim um ritmo que busca a vida nessa cidade de cerca de 4 mil habitantes. Transitando entre o coletivo e o pessoal, o filme resgata narrativas, histórias da experiência de viver nessa cidade. Ao mesmo tempo, esse pequeno universo é também um retrato do Brasil.

São histórias únicas, como a de um jogador do campeonato local, ou o primeiro homem nascido e criado no município que seria ordenado presbítero - e o filme acompanha com ele esse dia especial. São momentos assim, que trazem o colorido humano ao filme, enriquecem e nos lembram da complexidade humana diante da sociedade.

A curiosidade de Bruno Jorge é o que alimenta o filme. Um dia, indo à padaria, percebe uma movimentação na delegacia, e entra para ver o que está acontecendo. Espera que seja um crime impressionante, mas, não, é o Papai Noel que está saindo dali em uma charrete pelas ruas da cidade.

Inutensílios é um documentário poético, um ensaio sobre a condição humana numa sociedade que, embora capitalista (não há, obviamente, como fugir disso), não se curva a um dos principais eixos desse modo de produção: o tempo. Nesse sentido, é até uma investigação sobre a possibilidade da utopia, e sua fotografia em preto e branco só ajuda a mostrar como isso pode ser um anseio atemporal.
(Alysson Oliveira)

Sessões

Rio de Janeiro

Estação Net de Cinema Botafogo - 6/4/2024 às 20h30

Estação Net de Cinema Rio - Sala 5 - 7/4/2024 às 17h30

São Paulo

Espaço Itaú de Cinema Augusta - 8/4/2024 às 20h30

Cinemateca Brasileira - Sala Grande Otelo - 9/4/2024 às 19h30

Tesouro Natterer

Um membro dos povos originários brasileiros, da etnia munduruku, está num museu em Viena, onde no depósito do Departamento da América do Sul, ele se depara com diversos apetrechos feitos de penas, típicos do seu povo, e diz: “Deveriam mandar para nossa comunidade mesmo, para nós produzirmos novos de novo, vendo esses aqui.”
Como nos é apresentado depois, o personagem é o professor Hans Kaba Munduruku, que, como nós, fica, ao mesmo tempo, encantado e indignado pelo fato de um museu austríaco ter um acervo tão grande e variado de artefatos de seu povo. Ele encontra coisas tão antigas que nem existem mais em sua comunidade.

Dirigido por Renato Barbieri, Tesouro Natterer parte da figura do naturalista austríaco Johann Natterer, que chegou ao Brasil em 1817 como membro da Expedição Austríaca, que acompanhou a então arquiduquesa Leopoldina. O acervo tem o impressionante número de mais 50 mil objetos, conseguidos por meio de escambo. O filme acompanha Kurt Schmutzer, principal biógrafo de Natterer, refazendo sua viagem no Brasil.

Reconstituir, por meio de depoimentos, a trajetória de Natterer no Brasil é resgatar uma narrativa de artefatos históricos que não estão mais em seu país de origem. É a história de como a Europa tomou para si tesouros arqueológicos ou mesmo culturais e antropológicos, como é o caso aqui, para seus museus. Ao filme, no entanto, falta um olhar mais crítico sobre essa questão, que até existe em algumas falas do professor Hans Kaba, cuja presença, aliás, poderia ser mais aproveitada.

Na forma, é um filme bastante convencional, com um uso excessivo de música, mas que traz um episódio pouco lembrado ou mesmo conhecido, que remete à história constante de exploração e colonização (formal ou informal) que o Brasil sempre sofreu.

Há momentos de pouca sutileza para transmitir uma mensagem. Como quando mostra Hans Kaba Munduruku filmando o acervo do museu com um celular moderno, ao mesmo tempo em que Schmutzer
participa de rituais com uma tribo de povos originários. Parece que o filme quer louvar uma certa globalização que permite esse tipo de coisa. (Alysson Oliveira)

Sessões

São Paulo:

Espaço Itaú de Cinema Augusta - 6/4/2024 às 20h30

Cinemateca Brasileira - Sala Grande Otelo - 7/4/2024 às 19h30

Rio de Janeiro:

Estação Net de Cinema Botafogo - 8/4/2024 às 20h30

Estação Net de Cinema Rio - Sala 5 - 9/4/2024 às 17h30