A paulistana Anna Muylaert é não só uma diretora que faz cinema como também pensa sobre cinema - e não apenas tendo como foco as mulheres, embora inevitavelmente seu ponto de vista seja feminino. Como ela lembrou na coletiva concedida no mais recente Cine BH, em setembro, estar no mundo é muito diferente para um homem e para uma mulher. Um ponto de partida, portanto, incontornável.
Em seu novo filme, O Clube das Mulheres de Negócios, Anna justamente realiza uma inversão - são os homens (Rafael Vitti e Luis Miranda) os assediados e perseguidos num mundo comandado por mulheres poderosas, interpretadas por um notável elenco feminino, encabeçado por Cristina Pereira, Irene Ravache, Grace Gianoukas, Louise Cardoso e Ítala Nandi. Mas não é apenas disso que o filme vai falar, enveredando, com admirável liberdade, numa fabulação que incorpora elementos de horror e sátira política, sem medo de arriscar.
É uma virada marcante, certamente, em relação a Que Horas Ela Volta? (2015), o maior sucesso da carreira da cineasta e ao qual muitos esperam que ela volte, repetindo uma fórmula - que é tudo o que Anna não quer, como diretora.
Para começar, O Clube das Mulheres de Negócios ignora por completo a chave realista que marcava Que Horas Ela Volta?, e esse é claramente o primeiro item da declaração de intenções do filme. A ideia inicial do roteiro nasceu em 2015, centrada numa tensão sobre gênero que desembocou, em escala mundial, no movimento Me Too. Mas, com o agravamento do que a diretora definiu em BH como “a fase cada vez mais delirante do País e do mundo”, as intenções da história foram se alargando, sempre incorporando o filtro da fábula, da fantasia, que é tão característico de uma parte da obra da diretora, como seu primeiro e premiado longa, Durval Discos (2002).
A diretora enxergou mais uma afinidade entre os dois filmes: “Tanto Durval Discos quanto O Clube… são filmes dissonantes com sua época”. A própria alternância de gêneros e tons dentro deste filme mais recente são uma espécie de desafio ao que Anna enxerga como uma certa tendência de homogeneização em muitas narrativas fílmicas que passaram por laboratórios de roteiro - aos quais ela, em princípio, não é contra. Mas seu processo criativo é bem outro.
No caso de O Clube das Mulheres de Negócios, ela se aliou, para escrever o roteiro, a Gabriel Domingues. Os dois mantiveram um processo de troca que incluiu ver filmes, ler livros (ela recorreu, a certa altura, à peça Rei da Vela, de Oswald de Andrade, entre outros textos), conversas, amadurecendo conceitos e situações que se nutriam de um contexto social e político muito particular - e que incluiu a pandemia, o governo Bolsonaro e o alastramento de ideias autoritárias pelo mundo afora.
Até um sonho inspirou uma das sequências do filme, envolvendo onças, que representam o maior uso do CGI de toda a obra da Anna - e que dependeram de uma parceria amistosa, já que o orçamento era limitado, entre a diretora e um ex-colega da ECA, Alceu Baptistão, da empresa Vetor Zero. Este foi um processo de duplo aprendizado, já que a empresa, especializada em publicidade, nunca tinha realizado sequências tão longas usando efeitos especiais.
As onças, segundo a diretora, são o elemento da história que mais intriga o público, obtendo dos espectadores interpretações diversas (o filme teve sua première no recente Festival de Gramado, onde obteve o Prêmio Especial do Júri). “Procurei cruzar todas as diferenças, gênero, classe, raça. As onças atravessam tudo isso. Alguns vêem nelas o povo, outras, a força da natureza e outras coisas”. Por essas e outras, a diretora enxerga em O Clube das Mulheres de Negócios “um filme retrô, como um filme dos anos 1970”. Em outras palavras, livre, anárquico, provocativo, que, como diz Anna, “chama um debate, provoca perguntas, de certo modo convida à convivência”. Nada melhor, como perspectiva, numa época em que os filmes brasileiros, não raro, têm amargado bilheterias abaixo do esperado - com a gloriosa exceção do fenômeno Ainda Estou Aqui, de Walter Salles.
O melhor de tudo é o destemor com que Anna se arrisca ao grotesco, que o efeito do conjunto salva de acontecer. Certamente, é um filme provocativo, mas plenamente sugestivo, instigante e perversamente divertido.