01/05/2024

Perfis brasileiros e os olhares múltiplos de Mark Cousins

Na competição brasileira, destaques para dois alentados perfis:
Fernanda Young - Foge-me do Controle, de Susanna Lira, sobre a escritora, roteirista e apresentadora falecida em 2019, e Lampião, Governador do Nordeste, de Wolney Oliveira, mergulhando nas muitas faces do mito sertanejo. Na seleção internacional, cinco títulos inéditos e três em retrospectiva apresentam a obra instigante do irlandês Mark Cousins.

Competição brasileira

Fernanda Young - Foge-me ao controle

O documentário começa em 2007, com imagens de Fernanda Young numa viagem no deserto do Atacama, com falas dela que dão uma dimensão da escritora (como ela diz preferir ser chamada), seu humor peculiar, uma sagacidade nem sempre compreendida.
Dirigida por Susanna Lira, o documentário resgata a trajetória de Fernanda, sublinhando como ela sempre se considerou uma escritora, mesmo antes de ser alfabetizada. Contar histórias – mesmo que só em sua mente – era uma constante na vida de Fernanda, que morreu em 2019. “Escritora é o que eu sou, o resto é como eu posso manifestar minhas necessidades financeiras, criativas ou políticas.”

Novamente, como ela mesma define, a tríade que marca sua obra, seus interesses: o amor, o tempo e a morte. Ao resgatar sua obra como roteirista – a série e os filmes Os Normais – ou escritora – "Vergonha dos pés" é um dos seus melhores romances –, mostra como esses elementos se intersectam em uma obra literária que se manifestava em diversas mídias. O humor é uma forma de crítica social. Os Normais, com seu deboche, questionava os papéis de gênero antes que isso se tornasse uma questão tão debatida no presente.

Embora o filme siga um tom um tanto convencional, a pesquisa de arquivo de imagens e depoimentos de Fernanda é rica e constrói um vasto painel pessoal e profissional da escritora. Esse olhar impressionista é interessante por fugir da convencionalidade do cinema biográfico cronologicamente quadrado, acompanhando do berço à morte. Traz momentos-chaves, como o casamento com Alexandre Machado, seu parceiro de vida e profissional, que conheceu quando ela tinha 16, e ele 27 anos.

Fernanda começou a escrever poesia como uma forma de lidar com sua dislexia, e foi por ela descobrir que esse tipo de comunicação, para ela, não era possível, por isso tentou, no romance e em outros trabalhos, ser poética. São momentos como esse que trazem força e especificidade ao filme.

É um documentário, de certa maneira, um pouco caótico, mas isso não é acidente. Nessa essência desgovernada, está Fernanda, que, como ela mesma diz, era assim, mudava de um assunto para outro sem aviso, testava a atenção do seu interlocutor,
que sempre lhe interessou profundamente. É bonito como o filme dá conta da complexidade dessa mulher. (Alysson Oliveira)

Sessões

São Paulo

Espaço Itaú de Cinema Augusta - 07/04/2024 às 20h30

Cinemateca Brasileira - Sala Grande Otelo - 08/04/2024 às 19h30

Rio de Janeiro

Estação Net de Cinema Botafogo - 11/04/2024 às 20h30

Estação Net de Cinema Rio - Sala 5- 12/04/2024 às 17h30

Lampião, Governador do Sertão

“Pirata”, “Samurai”, “Napoleão do Povo”. Esses são alguns apostos que vêm junto a Lampião no documentário Lampião, Governador do Sertão. São proferidos, respectivamente, por um jovem cantor de músicas inspiradas no cangaço, Ariano Suassuna e Sylvie Pierre, crítica de cinema francesa. O filme de Wolney Oliveira tenta, exatamente, essa busca pela pluralidade, ou, mais do que isso, pela desconstrução do mito e a reconstrução de uma outra figura.
Como diz a própria Pierre, todo mito que sobrevive por tanto tempo tem um fundo de verdade. Para provar isso, o documentário se vale de uma enorme gama de depoimentos, de sobreviventes do bando de Lampião a familiares – em especial a neta Vera Ferreira, neta de Lampião e Maria Bonita.

Sóbrio em sua construção formal, o documentário busca sua razão de ser nessa investigação polifônica sobre o homem versus o mito, concluindo que, como colocou John Ford, se a lenda é mais interessante do que a verdade, imprima-se a lenda. Mas a questão é: não existe uma lenda definitiva sobre Lampião. Existem muitas.

Virgulino Ferreira tem uma história, especialmente oral, marcada por contradições. Uns dizem que ele matou o pai, outros, que virou cangaceiro para vingar a morte do pai. Alguns o chamam de herói, outros de bandido sanguinário, que prestava serviços como matador para qualquer um que pagasse, fosse pobre ou rico.

Em meio a tantas histórias, o filme toma, obviamente, seu partido, embora de forma até discreta. Lampião é construído como uma figura um tanto heroica, mas, acima de tudo, no mundo contemporâneo, como um produto da indústria cultural. A memória, a lenda ou o mito, como se quiser chamar, do cangaço movimenta a economia de pequenas cidades, seja com artefatos, museus ou turismo.

Mas não é só isso. Lampião e sua história foram tema do desfile da carioca Imperatriz Leopoldinense, em 2023, que foi a vencedora do Carnaval do Rio. Chegar a tema de samba-enredo, como se sabe, é o ápice da comercialização de algo enquanto produto cultural. Nesse sentido, como mostra o filme, o cangaceiro ganha um status que está acima dele mesmo e de sua história. (Alysson Oliveira)

Sessões

Rio de Janeiro

Estação Net de Cinema Botafogo - 07/04/2024 às 20h30

Estação Net de Cinema Rio - Sala 5 - 08/04/2024 às 17h30

São Paulo

Espaço Itaú de Cinema Augusta - 11/04/2024 às 20h30

Cinemateca Brasileira - Sala Grande Otelo - 12/04/2024 às 19h30

Mark Cousins no É Tudo Verdade 2024

Crítico, curador e documentarista, o irlandês Mark Cousins visita pela primeira vez o Brasil nesta 29ª edição do Festival É Tudo Verdade, em que integra o júri internacional e será presença de destaque na 21a Conferência Internacional do Documentário, em que ministrará uma masterclass - na terça (9/4), às 10h, na Cinemateca Brasileira, em S. Paulo.
Cineasta sensível, Cousins exibe uma peculiar desenvoltura para agregar aspectos pessoais a seu estudo sobre filmes e personalidades do cinema, em documentários como A História do Olhar, a série Women Make Film e A História do Cinema: Uma Nova Geração, todos exibidos em edições anteriores do É Tudo Verdade. Assim como o faz relação a fenômenos sociais mais amplos, como visto em Marcha sobre Roma, uma aguda reflexão sobre o fascismo e não só o italiano, que teve sua première no Festival de Veneza em 2022.
Todos estes filmes, exceto A História do Cinema: Uma Nova Geração, serão exibidos numa retrospectiva nesta edição do festival, assim como outros cinco títulos do realizador inéditos no Brasil: Uma História de Crianças e Cinema (2013), Eu Sou Belfast (2015), Os Olhos de Orson Welles (2018) [foto], Meu Nome é Alfred Hitchcock (2022) e Cinema Tem Sido Meu Verdadeiro Amor: O Trabalho e a Vida de Lynda Myles (2023).

Será uma oportunidade de ouro para conhecer ou revisitar parte da obra de um dos realizadores mais capazes de propor viagens cinematográficas pela história do cinema, propiciando um mergulho nas transformações do século XXI, por exemplo, em termos de tecnologia e nas mudanças que ela acarreta para o nosso olhar.

Com observações instigantes, ele nos conduz em sua narração por seus documentários numa espécie de sonho acordado em que procura chamar nossa atenção para a beleza, o horror, ou o apuro do que se vê, como se nos sentasse ao seu lado, compartilhando uma visão inclusiva do cinema, sem procurar impor grandes conceitos ou teorizações, deixando-nos a tarefa de nos deslumbrarmos ou nos chocar-nos com as imagens que nos entram pelos olhos. (Neusa Barbosa)

Confira as sessões dos filmes de Mark Cousins na programação do festival.