17/03/2025

Em Cannes, glamour só no salto

Em pleno século 21, custa a crer que algumas situações constrangedoras ainda aconteçam em Cannes – como barrar mulheres que compareçam às sessões de gala de sapatilhas sem salto, ainda que de strass ou materiais semelhantes. Mesmo que se trate de senhoras de mais idade, elas são obrigadas a subir no salto, senão, não entram.
 
O mico aconteceu até com uma produtora, Valeria Richter, que havia tido parte do pé amputado, e da mulher de um dos diretores que apresentaram filme aqui, o indiano Asif Kapadia (autor do documentário Senna, de 2010, que agora radiografou a cantora Amy Winehouse em Amy). Sua esposa, afinal, entrou, mas foi exceção.
 
O diretor fo festival, Thierry Frémaux, também teve que pagar mico, pedindo desculpas em público, atribuindo os incidentes a um "excesso de zelo" dos seguranças. Mas, que o protocolo existe, lá isso existe. Dá para acreditar que ele possa permanecer imune a todas as mudanças dos últimos 70 anos ? Os rapazes, é bom que se diga, também não podem esquivar-se ao inevitável smoking, ainda que à luz do dia – se a sessão for a oficial, de gala, a do tapete vermelho. Não à toa, pode-se adquirir no comércio local, por escassos 10 ou 15 euros, uma gravatinha borboleta bem mixuruca, para os convidados enganarem os porteiros. Bem-feito!
 
Mas está na hora de parar com isso. Está bem que ninguém espera que alguém de bermuda e camiseta vá assim a estas sessões. Mas um blazer, um vestido alinhado e sapatilhas, sim, por que não? O maior glamour, afinal, deve estar na tela. Não fora dela.

Woody Allen, mais relax aos quase 80 anos

 Cannes - Mais uma vez, Woody Allen voltou a Cannes. E, considerando a primeira vez que o entrevistei por aqui, há exatos 13 anos (quando ele trouxe Dirigindo no Escuro), melhorou sua adequação de figurino ao clima. Naquela altura, o entrevistei no terraço de um dos grandes hotéis daqui, o Carlton, sob um céu muito azul de primavera, vestindo um paletó de tweed pesadão, totalmente impróprio para o clima.
 
Hoje, outro dia com clima igual por aqui – embora com considerável ventinho -, ele apareceu na coletiva de imprensa de seu novo filme, O Homem Irracional, vestindo uma informal e leve camisa xadrez azul escura. Parece que pouco antes de completar 80 anos (em dezembro), ele está ficando mais relaxado, até no figurino.
 
Ele enfrentou a coletiva, por exemplo, mais à vontade que da última vez (ele é um habituê, vem quase todo ano). Pareceu conectado e riu de perguntas irreverentes, como se já tinha pensado em matar alguma de suas mulheres (tema que tem a ver com o filme atual). Ele riu e respondeu: “Acabei de pensar agora!”. Não perdeu a piada, como nos bons velhos tempos de stand up comedy.
 
O que não falta, infelizmente, por parte de alguns jornalistas brasileiros, é a clássica perguntinha: “Quando o sr. vai filmar no Brasil? Por que não filma no Rio de Janeiro?”. E, com infinita paciência, Woody respondeu que “não saberia por onde começar” para filmar algo no Brasil, onde ele nunca esteve. Ele fica à vontade de filmar em Nova York ou Paris, que ele conhece bem. Cinema, para ele, é uma sonata, não uma sinfonia. Ele faz o jogo do tamanho que sabe e pode e ainda se diverte. Enquanto ainda divertir os outros também, está tudo certo, os dois lados saem ganhando.

Meus filmes favoritos em 2014

2014 no finzinho, hora de balanço.
 
Um pouco menos de estreias nas telas (379 contra 398), mas ainda assim um universo enorme para atravessar.
 
Foi um ano bom, apesar de tudo. Meus favoritos estão aqui embaixo (e feliz 2015 a todos!):
 
Estrangeiros

Brasileiros

Três filmes para colocar a imprensa em foco

Três bons filmes para repensar o jornalismo estão chegando por aí.
 
Dois deles ainda vão estrear nos cinemas. Vamos falar primeiro do que fala de um fenômeno muito atual – embora não tenha sido inventado agora -, o jornalismo encharcado de sangue e sensacionalismo, esse o oportuno tema de O Abutre, de Dan Gilroy, estrelado pelo ator Jake Gyllenhaal.
 
O filme, na verdade, aborda várias coisas, mas a principal mesmo é como o jovem desempregado Louis Bloom, que vivia de roubo de materiais de construção, acha o filão da reportagem policial. Descobrindo que pode ser um free lancer e, com uma pequena câmera e o acesso à frequência da rádio da polícia, ganhar dinheiro revendendo seus filmes para uma emissora de TV, ele descobre sua “vocação” – devidamente estimulada, é claro, pela insaciável fome de sangue, de acidentes de trânsito a crimes hediondos, de que se nutre uma parte da programação da televisão.
 
A ideia é mesmo essa: que tipo de “jornalismo” ocupa vários programas longuíssimos, nas tardes em que mesmo crianças podem vê-los? E com um viés de “quanto pior melhor”? Que ética existe nisto? Assunto quente e que ganha neste bom filme uma interpretação empenhadíssima do ator Gyllenhaal, um de seus produtores. Estreia nacional prevista para 18 de dezembro.
 
Voltando os olhos para um passado não muito distante, O Mensageiro, de Michael Cuesta, traça o perfil de um personagem real, Gary Webb (Jeremy Renner), repórter de um jornal obscuro da California, o San Jose Mercury News, cujo esforço simplesmente revelou em primeira mão o escândalo do envolvimento da CIA com o tráfico de armas e drogas dos “contras”, fazendo vista grossa inclusive ao despejo de crack nos EUA, para obter dinheiro e financiar a oposição ao governo sandinista da Nicarágua.
 
Peixe pequeno, o repórter, pai de família endividado, com três filhos, sofreu um assassinato de reputação, com a decisiva ajuda de parte dos colegas dos jornalões – Washington Post, New York Times, Los Angeles Times e outros – que levaram o maior furo com a matéria dele. Os próprios chefes de Webb não seguraram a pressão do governo Ronald Reagan e da CIA. Por tudo isso, a história de Webb, que morreu de um jeito nada bem explicado, aos 49 anos, é exemplar. Ele sim foi um herói da liberdade de expressão e não se fala mais nisso. Estreia prevista do filme: 11 de dezembro.
 
Já passou em diversos estados do país, mas longe de esgotar seu público e, mais ainda, seu assunto, o documentário brasileiro O Mercado de Notícias, de Jorge Furtado, está chegando ao DVD. Ótima oportunidade para ver e rever uma das mais criativas e vigorosas reflexões, a que não faltam nem substância, nem ironia, sobre a própria natureza da imprensa – a partir da peça inglesa que dá nome ao filme, de 1625, de Ben Jonson – e um mergulho no estado de coisas no Brasil, em tempos em que ela atua, cada vez mais, como um partido político, com a desvantagem de que não é submetida ao filtro das eleições.
 
Ótima pedida – o DVD de O Mercado de Notícias pode ser adquirido pelo site da Casa de Cinema de Porto Alegre: http://casacinepoa.com.br/loja/mdn

Eternamente Glauber

 Rever Deus e o Diabo na Terra do Sol (foto) o clássico de Glauber Rocha, em cópia restaurada em DCP 2k, na abertura do 47o Festival de Brasília, é destas experências renovadoras.  Há menos de seis meses, eu o tnha revisitado. O que não abalou as emoções do reencontro com o filme, que está fazendo 50 anos de lançamento.

Lançada duas semanas antes do golpe de 1964, a obra continua atual, todo esse tempo demolindo fronteiras e tabus, poderosa em sua capacidade de sintetizar contradições milenares do País e da condição humana a retratar as mazelas dos camponeses Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães), perdidos no sertão, entre os desmandos dos coroneis donos da terra, dos beatos fundamentalistas e dos últimos jagunços, à sua frente, Corisco (Othon Bastos).

A música de Sérgio Ricardo (sobre os versos em cordel do próprio Glauber) é uma das pedras basilares desta catedral cristalina da brasilidade que o cineasta construiu aqui, com intuição poética e política precisas. "Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não!", um de seus refrões a ressoar eternos na nossa memória afetiva. E a nos lembrar o quanto é complexa a identidade brasileira. O Brasil não é para principiantes, pontuava outro dos nossos gênios da raça.

Novo cinema brasileiro brilha em Paulínia

Boa notícia: o cinema brasileiro vai bem, obrigado.
 
Pelo menos, a se avaliar a partir do mais recente Festival de Paulínia – outra boa notícia é que o próprio festival parece ter voltado à forma, em seu formato normal, com filmes inéditos.
 
É de comemorar a força de dois novíssimos diretores, o pernambucano Camilo Cavalcante, que foi com méritos o grande vencedor do festival, com seu duro e potente A história da eternidade. Assim, Camilo confirma um talento que vinha amadurecendo de seus vários (e também premiados) curtas.
 
Também deu gosto ver como a nova geração deu conta de um retrato nuançado e reflexivo da nossa elite, no excelente Casa grande, do estreante carioca Fellipe Barbosa. É muito bom ver um novo diretor pensando o Brasil em que vivemos como gente grande, e, o que é melhor, não esquecendo de infiltrar humor. É assim que a gente é.
A paulista Juliana Rojas arrasou com a mistura entre musical, terror e humor do criativo e delicioso Sinfonia da necrópole, mais uma confirmação do talento da diretora neste universo, que ela cultivou muito bem também em seus premiados curtas.
 
Sangue Azul, de Lírio Ferreira, percorre aquele universo livre, criativo, lúdico de um diretor que já deu muitas alegrias ao cinema brasileiro, e continua dando. Um sopro de vida e liberdade está neste filme aqui.
 
Infância, do Domingos de Oliveira, é um belo mergulho nas memórias de outro cineasta que extrai pérolas da própria vida.
 
Foi disto que eu gostei mais por lá.

Tarantino: o incansável menino mimado de Hollywood

Cannes – Vinte anos depois da Palma de Ouro para Pulp Fiction, Quentin Tarantino está de volta a Cannes, para apresentar a que dever ser uma concorrida sessão do filme na praia, nesta noite de sexta (23) – esperemos que o vento e a chuva desta temperamental primavera da Riviera deem uma trégua.
 
Quem te viu, quem te vê. Vinte anos atrás, Tarantino era um novato em busca de um lugar ao sol. Hoje, é um astro poderoso que não se abala com provocações, como a que lhe fez um jornalista, que lhe pediu comentário sobre uma frase atribuída a Jean-Luc Godard, que teria dito que Tarantino “não é ninguém”. “Não acredito que ele tenha dito isso, a não ser que você possa me provar. Do contrário, vou assumir que você está exagerando”. Isso tudo sem perder o sorriso e o bom humor.
 
Melhor ainda, Tarantino não perdeu o tesão pelo cinema, especialmente o seu próprio. Diz alegremente que vê e revê seus filmes – “tenho pena dos diretores que dizem que não fazem isso”. Mas claro que não se limita a eles. O ex-funcionário de locadora tem uma coleção de filmes 35mm e 16 mm, que assiste sem parar. O que não quer dizer, evidentemente, que não seja um homem do digital – que, para ele, democratiza o acesso da profissão aos novos diretores.
 
“Quando eu comecei, você tinha que ter no mínimo um filme 16 mm”, pontifica, com a sabedoria de um veterano.  Ele recorda, também, que no seu início, nos anos 1980, a tradição de Hollywood com a qual ele e outros novatos tinham que se confrontar era intimidante. “Havia um mantra de como os personagens deviam ser. Mesmo os maiores canalhas tinham que se redimir, nem que fosse nos últimos minutos. Eu odiava isso. Meu cinema foi uma reação a esse tipo de opressão”.
 
Como se vê, modéstia não pertence ao seu mundo. Auto-referente, ele diz que seu “corte do diretor é o primeiro corte” e que, mesmo revendo-os, não tem sonhos de remontar seus filmes. No máximo, sonhou lançar Kill Bill em quatro capítulos, como uma minissérie, aproveitando todo o material dele.
 
Sobre seu projeto de faroeste, The Hateful Eight, cujo vazamento paralisou a produção, diz que ainda não decidiu o que fazer. Está terminando um segundo esboço do roteiro, quer fazer um terceiro. Não sabe ainda se vai fazer mesmo um filme, ou uma peça de teatro, ou lançar em livro. “Quem sabe os três”. Guloso.

Uma noite com Sophia Loren

Cannes – Mesmo o 67º festival não tendo apresentado até agora nenhuma epifania, ver de perto a estrela italiana Sophia Loren, ontem à noite, foi um dos meus prazeres secretos.
 
Perto dos 80 anos, ela comtinua classuda, elegante, carismática, embora a idade, como acontece até mesmo às divas, cobre seu preço. Mas ela estava lá, radiante num vestido amarelo brilhante como o sol, na lotada sala Soixantième, de braço dado com o filho Edoardo Ponti, para apresentar a première de um curta dirigido por ele, La Voce Umana, em que ela volta a atuar, abrindo a reapresentação, numa esplêndida cópia restaurada, da comédia Matrimônio à Italiana (64), de Vittorio de Sica, parte da seção Cannes Classics.
 
Se alguém achou que ali estava uma velhinha aposentada, perdeu essa ilusão na própria apresentação – quando Sophia desautorizou a instrução do diretor artístico de Cannes, Thierry Frémaux, de que ela falasse italiano, para que ficasse mais à vontade, e que o filho, Edoardo, a traduzisse em francês. “Ma perchè, se posso parlare francese?”, protestou ela suavemente. Todos riram. Mas o fato é que ela começou a falar italiano, mas rapidamente fez o que bem entendeu, passando ao francês. Em sessão de diva, manda a diva, especialmente se é uma mamma napolitana.
 
Rever Sophia na tela foi uma dessas coisas que restauram nossa fé no cinema – ainda mais numa tarde em que eu tinha assistido há pouco o desastre da estreia de Ryan Gosling como diretor, Lost River. No curta La Voce Umana, inspirado em Jean Cocteau, Sophia vive uma velha amante abandonada, que fala sem parar por telefone com este homem que tanto a tem consumido, mas ao qual ela se sente implacavelmente ligada. Mostrando sem medo os efeitos da idade no seu belo rosto, ela mostrou que seu talento continua em forma.
 
Depois, revê-la no auge de seus 30 anos como a maravilhosamente humana Filumena Marturano na comédia de De Sica, baseada na peça de Eduardo Di Filippo, ao lado de seu maior companheiro na tela, Marcello Mastroianni – cujo olhar ilustra o belíssimo cartaz do festival deste ano – fechou a melhor das noites. Não há como não sair em estado de graça de uma sessão assim.

Os hermanos em Cannes 2014

Cannes - A presença argentina em Cannes 2014 está sendo interessante., com filmes inteiramente diferentes.
 
Na competição, Relatos Salvajes, de Damián Szifron – que, como ele disse na coletiva, poderia ter sido brasileiro, caso seus ancestrais poloneses tivessem conseguido desembarcar aqui antes daquele país – agradou pelo seu humor feroz, com um toque de crítica social.
 
No Un Certain Regard, Lisandro Alonso afirmou o poder da fantasia e da imaginação em Jauja, uma espécie de fábula política.
 
Fora da competição, também embarcou numa fantasia com muitas raízes políticas El Ardor, de Pablo Fendrik – aliás, é uma coprodução brasileira, com dois ótimos atores nossos, Chico Díaz e Alice Braga, ao lado do mexicano Gael García Bernal.
 
Tem muita gente por aí, jornalistas inclusive, com dor de cotovelo desta participação argentina, que inclui outros filmes que não vi. Eu não. Acho bacana esta presença deles, da América do Sul, num festival que é tão eurocêntrico, e cada vez mais, ninguém se iluda. Esta praia não é e nunca será nossa.
 
Acho que a explicação para esta presença argentina tem a ver com o poder de produtores e coproduções – os argentinos, desta vez, se deram melhor. Mas isto é cíclico.
 
Este ano, temos mais o que pensar. Viggo Mortensen, ator de Jauja, que é norte-americano mas viveu na Argentina e torce pelo San Lorenzo – time do papa Francisco – veio à sessão oficial do filme trazendo um pequeno cartaz, feito à mão, onde se lia: “Queremos a Copa”. Eu digo: “Fica querendo, Viggo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!”.