Cinema brasileiro avança em Cannes com prêmio para Baby e estreia de Karim Ainouz
- Por Neusa Barbosa, de Cannes
- 23/05/2024
- Tempo de leitura 5 minutos
Cannes - Quarta-feira (22/5) foi um ótimo dia para o cinema brasileiro em Cannes. O ator Ricardo Teodoro, de Baby, de Marcelo Caetano, ganhou o prêmio de revelação na Semana da Crítica, por coincidência no mesmo dia que o concorrente brasileiro à Palma de Ouro, Motel Destino (foto ao lado), de Karim Aïnouz, foi exibido nas sessões de gala e da imprensa.
Este que é o oitavo filme de Karim - participando pela segunda vez na competição de Cannes (ano passado foi com a produção inglesa Firebrand) - que abre com uma explosão de cores, novamente, uma bem-sucedida parceria com a diretora de fotografia francesa Hélène Louvart, na praia cheia de falésias de Beberibe, a 79 km de Fortaleza. Neste ambiente ensolarado, molda-se a história perigosa de três personagens, Heraldo (Iago Xavier), um jovem pobre e em fuga de criminosos, acolhido no motel que dá nome ao filme, que pertence ao casal Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção).
Nesses corredores do motel, onde se ouve o som do gozo dos clientes e se manifesta o voyeurismo dos patrões, nasce a paixão proibida entre Dayana e Heraldo, temperando uma história noir tropical, embalada por músicas como “Pega o Guanabara”, de Wesley Safadão e Alanzinho Coreano.
Voltando a filmar em sua terra natal depois de 10 anos - a última vez foi Praia do Futuro (2014) -, o diretor cearense delineia uma história em que o crime e a ameaça de morte governam esses destinos, mas não deixa de haver sonho, esperança, paixão. Heraldo, como ele diz num dos melhores diálogos, parece ter um alvo no peito, é um sobrevivente, como todo jovem pobre, não-branco, tentando arrancar seu sustento de uma realidade de oportunidades precárias para sua classe social.
Coletiva
Na coletiva do filme, nesta tarde de quinta (23), Karim destacou ter procurado falar de dois temas que o tocam muito: o desamparo da juventude e a violência contra a mulher, este último assunto encarnado na relação abusiva entre o casal Dayana e Elias.
Um dos roteiristas, Maurício Zacharias - o outro é Wislam Esmeraldo -, destacou ter entrado no projeto já adiantado, e que seu trabalho, basicamente, foi editar o que já existia. Nesse sentido, ele opinou por tirar diversas cenas de violência mas, no caso das situações agressivas de Elias contra Dayana, ele acreditou que elas deviam ficar, “porque era importante para a história”.
A atriz Nataly Rocha, por sua vez, contou ter se preocupado, em sua interpretação, em como “retratar a resistência dela de forma sutil”. Para Nataly, Dayana encontra em Heraldo “um igual, um outro corpo que sofre violências”.
Para Karim, a opção por não mostrar cenas de sangue, embora haja cenas violentas, vem da própria idéia de que “há coisas que a gente já viu demais no cinema, como estupro”.
Motel
Quanto à escolha do cenário do filme, Karim destacou que os motéis surgiram nos EUA como um lugar de passagem para caminhoneiros em trânsito. No Brasil dos anos 1960, sob a ditadura militar, esses locais de passagem tornaram-se espaços de desafogo, especialmente para uma classe média que tinha poder aquisitivo para ali viver sua sexualidade e suas fantasias íntimas. Para o diretor, o motel no Brasil simboliza um lugar “onde tudo pode acontecer” e também um signo da “hipocrisia” moral do país, que projeta uma imagem muito desinibida mas, no fundo, não é tanto assim.
Viagem pela história e pela Ásia
Num dia da programação em que a língua portuguesa esteve em destaque, houve também a exibição de Grand Tour, o concorrente à Palma do diretor português Miguel Gomes. Voltando novamente ao preto e branco visto em Tabu (2012), Gomes desenvolve uma história de época, ambientada na Ásia em 1918, mas em que ele não tarda em tomar todo tipo de liberdades, inclusive em relação aos objetos de outras épocas vistos em cena, visando, como sempre, expor o artifício da própria arte, o cinema.
Novamente, o colonialismo está no centro da narrativa mas, desta vez, os personagens são ingleses - embora falem português, o que reforça a admissão do artifício como recurso válido para toda arte. Dois personagens dominam a história. Na primeira parte, Edward (Gonçalo Waddington), funcionário público na Birmânia (hoje Mianmar), que foge intempestivamente quando tem notícia de que sua noiva há 7 anos, de cuja fisionomia sequer se lembra, está chegando.
Ela é Molly (Crista Alfaiate), e, ao contrário do que se poderia esperar, não desiste de encontrar o noivo fugitivo, num périplo que passa por várias localidades do então Império Britânico, como Bangcoc, Saigon, Manila, o Japão, Xangai e Wangyu, na China. Na segunda parte do filme, é Molly quem se acompanha por esses locais, que o filme revela em sua variedade humana e cultural, inclusive com narração nas línguas locais, tornando os dois ingleses coadjuvantes de um cenário muito mais diversificado e rico do que eles.
O filme é eficaz, inclusive formalmente, ao expor essa dicotomia entre colonizados e colonizadores, em que os segundos jamais compreendem a natureza dos primeiros - sequer o tentam, aliás -, sobrepondo-se a eles por meio de mecanismos de poder e manipulação, só tendo em vista os próprios desejos e obsessões.
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