Quatro mulheres em vertigem
- Por Neusa Barbosa, de Cannes
- 22/05/2024
- Tempo de leitura 6 minutos
Cannes - O festival caminha para a reta final, sem francos favoritos, com vários candidatos à Palma de Ouro dividindo opiniões - caso do sangrento The Substance, em que a diretora francesa Coralie Fargeat (de Vingança, 2018) escala Demi Moore como Elisabeth, uma ex-estrela de um programa televisiva de boa forma que cai em desgraça por ter entrado na meia-idade. Apesar do físico ultra-torneado e da aparência impecável, ela é afastada do programa e adere a um misterioso tratamento que promete restituir-lhe a juventude.
O pacote de substâncias que ela encomenda implica, na verdade, uma transformação bem mais radical do que Elisabeth imagina. Isso acarreta o aparecimento de um duplo da estrela, Sue (interpretada por Margaret Qualley), e uma série de consequências sinistras.
Num filme excessivamente longo, apesar de bem-produzido, a diretora se compraz em cenas de um gore explícito e absoluto, que não raro passa o limite de tolerância de alguns espectadores - foi esse o meu caso. Há leituras do filme circulando na imprensa que o definem como um horror feminista, mas não vejo esse tom tão bem-estabelecido assim. Há, certamente, uma crítica à ditadura da boa forma e da virtual proibição do envelhecimento para as mulheres, mas o roteiro não tem substância, perdão pelo trocadilho, para sustentar uma crítica consistente desses preconceitos.
É assumidamente um filme de gênero, carregado de referências, passando por Alfred Hitchcock, Brian de Palma e Stanley Kubrick, levando a crer que a diretora quer ser levada muito a sério. Pode conseguir, se o júri presidido por Greta Gerwig embarcar em sua profusão de prostética e cachoeiras de sangue. Espero que não.
Furacão Anora
Bem mais feminista é a protagonista de Anora, interpretada pela atriz Mikey Madison no filme dirigido pelo norte-americano Sean Baker.
Voltando a concorrer na Croisette depois de 2021, quando competiu com Red Rocket, Baker entrega uma personagem cheia de vida e atitude. Anora, uma neta de russos que prefere ser chamada de Ani, é uma escort girl e uma das estrelas da boate onde trabalha, em Nova York. Um dia, seu caminho se cruza com o de Ivan (Mark Eidelshteyn), um rico e inconsequente jovem herdeiro de uma família de milionários russos.
Não se sabe a origem do dinheiro dessa família, mas é notório que vem de negócios escusos. Ivan ainda não está no comando deles e vive sua vida de diversão como se não houvesse amanhã, levando Ani com ele. A moça é esperta mas se empolga com a oportunidade de subir na vida, ainda mais quando, numa de suas viagens, eles acabam se casando em Las Vegas. E o filme nem chegou à metade.
A grande sacada do diretor e roteirista é criar um turbilhão de situações brincando com as expectativas do público em relação a filmes de gênero, tornando os gângsters que fatalmente vão aparecer bem mais patéticos e menos letais do que se imagina à primeira vista, levando a pior muitas vezes da miúda mas aguerrida Ani.
Apesar da duração (2h26), o filme sustenta o ritmo e é divertido, aproveitando bem seus personagens, em que se destaca o capanga Igor (Yura Borisov), que tem na trama uma participação mais expressiva do que parece quando ele entra em cena. De todo modo, o filme agradou bastante e pode, quem sabe, surpreender nas premiações como roteiro.
Sombra de Marcello
Parceiros há sete filmes, desde Canções de Amor (2007), o diretor Christophe Honoré e a atriz Chiara Mastroianni compõem Marcello Mio, uma homenagem ao pai da atriz, Marcello Mastroianni, que incorpora diversas questões reais da vida de sua filha, que sempre carregou o peso desta filiação, além de sua mãe ser ninguém menos do que Catherine Deneuve.
Deneuve, aliás, entra amorosamente na história, em que se delineia uma crise na vida na vida de Chiara, não só profissional como de identidade mesmo. Isso a leva a assumir a identidade de seu pai, prendendo os cabelos, colando no rosto um bigode, vestindo-se como homem e falando italiano.
Essa mudança de identidade produz um choque à sua volta, começando pela mãe e também por outros atores e diretores com diferentes pesos na vida de Chiara, como seu ex- Melvil Poupaud, Nicole Garcia (com quem ela está preparando um filme), outro ex- Benjamin Biolay
e Fabrice Luchini (seu colega no projeto com Nicole e que se torna uma espécie de anjo protetor).
Mas o enredo se nutre também de uma bem-vinda poesia, colhida de cenas dos filmes do próprio Marcello, como A Doce Vida e As Noites Brancas, retrabalhadas num outro registro - introduzindo personagens como um cachorro e um soldado inglês, Colin (Hugh Skinner). Este entrelaçamento com o fio condutor da história é que faz a história crescer, com camadas de humor, ternura mas também uma indefinível melancolia. Afinal, todos temos saudades de Marcello Mastroianni.
Uma Nápoles em forma de mulher
Paolo Sorrentino entregou mais uma produção ambiciosa em Parthenope, que gira em torno de uma belíssima mulher com esse nome, interpretada pela novata Celeste Dalla Porta em quase todo o filme.
Portando esse nome de deusa e sereia, com uma vida de princesa, Parthé, como será chamada pelos íntimos, é vítima de uma espécie de maldição por conta dessa própria beleza estonteante, que não lhe dá nem amor, nem felicidade, numa trajetória marcada pela culpa pela morte do irmão (Daniele Rienzo) e uma série de relacionamentos truncados, no belo cenário de Nápoles (terra natal do diretor).
Há uma preocupação evidente em tornar Parthé mais do que um rosto bonito quando ela vai estudar Antropologia, sob a tutela do enfezado professor Devoto Marotta (Silvio Orlando). Mas essa vertente da história não é tão convincente como deveria, porque a própria personagem da protagonista não consolida tantas nuances quanto se poderia esperar.
Parthé permanecerá, assim, sendo uma visão, e uma belíssima visão, perturbadora para aqueles que entram em contato com ela, que não desconhece seu poder e o usa em seus relacionamentos fortuitos, com figuras eventualmente inesperadas, como um bispo (Peppe Lanzetta) - uma das muitas sequências do filme que não parecem fazer muito sentido além de provocar algum escândalo.
Bem melhor é a participação do inglês Gary Oldman, como um velho escritor, John Cleever, que Parthé admira e simboliza com mais consistência o desmoronar das ilusões com o tempo, que passa inapelavelmente, uma espécie de filósofo amador dentro da história. No mais, o espetáculo de Parthenope é de um luxuoso vazio, repleto de belas imagens mas inconsistente, insatisfatório. Desta vez, o diretor de A Grande Beleza, Juventude e As Consequências do Amor não acertou.
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