19/03/2025

Cannes aborda masculinidade tóxica em três momentos

Cannes - Se até agora estava faltando uma grande interpretação masculina - as femininas estão sobrando por aqui -, não falta mais: Sebastian Stan entregou uma ótima performance na pele do jovem Donald Trump no filme The Apprentice (foto ao lado), em que o diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi disseca a fundo a figura do ex e talvez futuro presidente norte-americano.
Partindo de um roteiro de Gabriel Sherman, Abbasi (que esteve em Cannes em 2022 com Holy Spider, vencedor do prêmio de melhor atriz para Zar Amir Ebrahimi) compõe uma espécie de biografia radical de Trump, expondo o processo de formação de uma personalidade agressiva e sem escrúpulos. Completando a orientação feroz do pai, o empresário imobiliário Fred Trump (Martin Donovan), que ensina aos filhos que só podem ser matadores ou perdedores, aparece na vida de Donald o advogado Roy Cohn (uma interpretação excelente de Jeremy Strong).

Stan, que já venceu o troféu de interpretação em Berlim com A Different Man, de Aaron Schimberg, expõe com segurança as camadas de seu protagonista, desnudando seu firme aprendizado com Cohn, um sujeito sem qualquer escrúpulo, vinculado à extrema-direita desde o macarthismo e ligado a mafiosos - que também se associam aos negócios do jovem Trump, além disso um hábil manobrista para esquivar-se do pagamento de impostos..

O resultado dessa convivência é a atuação cada vez mais desavergonhada de Trump em direção aos seus objetivos, baseada em ataques constantes, na sustentação pública de uma verdade própria e nunca admitir nenhuma derrota - moldando sua conduta como empresário e mais ainda como político.

Nesse universo de masculinidade tóxica, a figura de Ivana (Maria Bakalova), a primeira mulher de Trump, marca um pequeno espaço de sobrevivência de uma figura mais humana. Outra qualidade é que a direção de Abbasi não envereda por nenhuma caricaturização dos personagens. Ao contrário, mesmo perversos, Trump e Cohn são humanos, têm nuances, o que enriquece o filme de camadas da apreciação.

Embalando essa proposta dramatúrgica sólida, a fotografia do dinamarquês Kasper Tuxen alterna as cores e brilhos que vão moldando a irresistível ascensão de um perigoso tirano bufão.

Voyeurismo macabro

Não é a primeira vez que o diretor canadense David Cronenberg mergulha no seu voyeurismo da morte, como faz no concorrente à Palma The Shrouds (literalmente, “as mortalhas”). Sua outra fixação, a tecnologia, aqui é aplicada quando retrata o empresário Karsh (Vincent Cassel), que mantém um negócio de cemitérios high tech, que permite aos parentes manterem controle visual do que ocorre dentro dos túmulos - inclusive acompanhando remotamente a decomposição de seus corpos, se assim o desejarem.
O próprio Karsh é movido por esse voyeurismo mórbido, que lhe permite aplacar a dor pela morte da mulher, Rebecca (Diane Kruger). Todo o controle tecnológico deste cemitério asséptico foi desenvolvido pelo irmão de Karsh, Maury (Guy Pearce), que foi casado com a irmã de Rebecca (também interpretada por Diane Kruger).

Esta dualidade de mulheres idênticas, além do rigor científico e frio com que Cronenberg explora as vicissitudes do corpo (como ele fez em tantos filmes, o último deles, visto em Cannes 2022, Crimes do Futuro), conduzem uma narrativa com ecos profundamente autobiográficos: Cronenberg enviuvou, em 2017, de sua segunda mulher, Carolyn, e o personagem de Cassel parece, até no cabelo, um duplo do diretor canadense.

Dito isso, mesmo construindo com o rigor habitual um universo em que um humor sinistro discretamente se infiltra de tempos em tempos, The Shrouds não é o melhor exemplo da perícia do veterano diretor.
Em vários momentos, a narrativa se perde num excesso de palavras que não conduzem a lugar algum.

Mais uma vez, habita-se um universo de homens tóxicos, que aqui se comprazem em obsessões, possessividade até pós-mortem e numa espécie de esquartejamento às vezes literal do corpo feminino, ainda que o filme não negue o lado sinistro destas fixações. Afinal, o resultado é um tanto frustrante, bastante aquém de títulos como Senhores do Crime (2009) e Marcas da Violência (2008).

Um poeta reacionário

Em Limonov - The Ballad, outro concorrente à Palma, o diretor russo Kirill Serebrennikov resgata a figura dúbia de Eduard Limonov (Ben Wishaw), que a partir dos anos 1960 percorreu uma trajetória acidentada de um homem que cresceu em Karkhiv, na Ucrânia, filho de um funcionário da KGB, passando de operário a poeta, dissidente contra a vontade ainda na era soviética e, finalmente, exilado, primeiro nos EUA, depois na França, onde se tornou uma celebridade.
Apoiado num roteiro de Emmanuel Carrère (autor de um livro sobre Limonov), Pawel Pawlowski (diretor de Guerra Fria) e Ben Hopkins, o diretor atravessa as inúmeras contradições deste homem, contando com o talento de um intérprete sutil como Wishaw.

Limonov, afinal, não é uma figura simpática, oscilando entre posições políticas extremas, ultranacionalistas, comportamento turbulento e agressivo - inclusive contra si mesmo e contra seu grande amor, Elena (Viktoria Miroshnichenko) - e uma vida marcada por altos e baixos. Não foi à toa que ele adotou o pseudônimo de “Limonov”, ou seja, “granada”, ao qual sua biografia acabou fazendo justiça. Mas suas explosões, afinal, parecem ter saído pela culatra. E o filme igualmente não é o melhor momento do talentoso de Verão e A Filha de Tchaikovsky.