Sylvain George e o olhar humanista no documentário
- Por Alysson Oliveira e Neusa Barbosa
- 28/10/2023
- Tempo de leitura 10 minutos

A obra do documentarista francês Sylvain George, apresentada em retrospectiva presencial e no streaming do SESC Digital dentro da Mostra, e dois títulos imperdíveis dos festivais de Veneza e Cannes estão entre as grandes atrações deste segundo final de semana da Mostra. Leia também entrevista de Sylvain George, concedida ao Cineweb.
Sylvain George
Os documentários do cineasta francês Sylvain George são conhecidos por dois elementos: a longa duração (embora alguns tenham cerca de 90 minutos, ele tem filmes de mais de 4 horas) e o empenho social (são filmes sobre questões correntes na Europa, especialmente a crise dos imigrantes). Homenageado na 47a Mostra com o prêmio Humanidade, sua obra ganha uma retrospectiva que exibe seus longas em sessões presenciais e gratuitamente na plataforma SESC Digital/Cinema em Casa.
Formado em filosofia e ciência política, George trabalhou como assistente social antes de tornar-se cineasta, e essa experiência é clara no olhar respeitoso e carinhoso que tem pelas figuras à margem da sociedade. No díptico Noite Obscura – Folhas selvagens e Noite Obscura – Adeus Aqui, em qualquer lugar, suas obras mais recentes, ele acompanha Malik e outros jovens marroquinos que vivem em Melilla, um enclave espanhol em Marrocos.
Ele explica, em entrevista ao Cineweb, que levou mais de 3 anos realizando só a primeira parte. “Eu trabalho sozinho, sou a minha equipe. Primeiro eu visito a região, para conhecer melhor o lugar, as pessoas, entender o código de comunicação que existe ali, especialmente entre esses jovens que moram na rua.”
Seu método de trabalho também é bastante peculiar. Primeiro, para conseguir financiamento, ele escreve um documento com elementos do filme e uma hipótese. Depois, durante as filmagens, tudo muda. “A ideia é, então, subverter a ideia inicial. Às vezes, fico meio perdido, acabo tendo muito material, e também fico muito próximo das pessoas. Mas entender um lugar leva tempo.”
Em sua filmografia, que inclui, entre outros, Que descansem sem paz (Imagens da Guerra), George acompanha o fracasso do projeto europeu de civilização, numa máxima próxima à de Walter Benjamin: todo monumento de civilização é um monumento de barbárie. Seus filmes, documentos da civilização bárbara, expõem o fracasso da sociedade burguesa que, entre outros problemas, é incapaz de absorver os imigrantes de países que essa mesma sociedade colonizou e explorou.
“Meu propósito é compreender a consequência da imigração pela perspectiva humanista, de quem abandona seu país. É um tópico muito importante atualmente e muito estigmatizado. Busco me aproximar das realidades das pessoas para compreender as consequências das políticas imigratórias. Para abordar isso num filme, é preciso pensar no presente relacionado ao passado colonial.”
Para realizar os filmes, ele explica que, em primeiro lugar, é preciso construir uma relação de confiança. Para isso, ele produz pequenos curtas sobre a região, para mostrar a essas pessoas seu interesse pelo local. George ressalta que a vida na rua é muito perigosa e, de forma alguma, quer colocar seus entrevistados em risco ainda maior, por isso é preciso fazer o filme com paciência.
Outro elemento que chama a atenção em todos seus longas é como a fotografia em preto e branco, assinada por ele mesmo, é um elemento fortemente estético, que contribui na construção de uma linguagem que combina poesia e a dura realidade. Ele vê nisso uma espécie de deslocamento que causa um estranhamento revelador de algo novo. “É um movimento dialético, que é muito político e poético, causa uma espécie de suspensão no tempo e espaço e, ao mesmo tempo, cria algo totalmente único.”
Nos dois Noite Obscura, George acompanha Malik. No primeiro filme, exibido originalmente, na Mostra do ano passado, o protagonista ainda é criança, e o diretor vê nisso uma liberdade do próprio garoto. “A infância não é utilitarista, é possível brincar com as coisas. Vejo meus filmes dessa forma, inclusive, por isso penso em trabalhar numa estética apurada. Às vezes, é apenas pela questão da poesia mesmo.” O segundo longa, que ganhou uma menção honrosa no Festival de Locarno deste ano, acompanha Malik mais adulto e sua trajetória rumo a Paris.
George tem uma relação próxima com o Brasil. Era amigo do cineasta Andrea Tonacci, e continua em contato com sua viúva, a montadora Cristina Amaral. Eles se conheceram no festival Fronteira, em Brasília, e logo se tornaram amigos. O francês foi, também, apresentado à obra de Tonacci e fala dela com empolgação. “Ele começa com filmes incríveis, como Blábláblá e Bang Bang. O que uma pessoa faz depois de realizar esses longas? Ela se volta para o documentário. É genial.”
Agora, entre seus interesses no cinema brasileiro, George cita Adirley Queiroz, em cuja obra vê uma nova forma de cinema. Ele também não descarta filmar aqui, especialmente na Amazônia. (Alysson Oliveira)
Os filmes do cineasta estão disponíveis gratuitamente para streaming. Mais informações aqui
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E também nas seguintes sessões presenciais:
FRAGMENTOS (MINHA BOCA, MINHA REVOLTA, MEU NOME)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 4
31/10/23 - 16:00
31/10/23 - 16:00
NOITE OBSCURA - ADEUS AQUI, EM QUALQUER LUGAR
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 5
29/10/23 - 17:45
29/10/23 - 17:45
NOITE OBSCURA - FOLHAS SELVAGENS
CIRCUITO SPCINE LIMA BARRETO - CCSP
29/10/23 - 17:00
29/10/23 - 17:00
O IMPOSSÍVEL - PÁGINAS RASGADAS
CIRCUITO SPCINE OLIDO
28/10/23 - 18:00
28/10/23 - 18:00
PARIS É UMA FESTA - UM FILME EM 18 ONDAS
CIRCUITO SPCINE - BIBLIO. ROBERTO SANTOS
31/10/23 - 19:00
31/10/23 - 19:00
QUE DESCANSEM SEM PAZ (IMAGENS DA GUERRA)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 5
28/10/23 - 17:20
28/10/23 - 17:20
RUMO A MADRID
CIRCUITO SPCINE - BIBLIO. ROBERTO SANTOS
01/11/23 - 19:00
01/11/23 - 19:00
Dicas de dois filmes imperdíveis:
O Mal não Existe
Vencedor do Grande Prêmio do Júri e do prêmio da Fipresci no Festival de Veneza 2023, o novo filme do japonês Ryûsuke Hamaguchi (Drive my car) se recusa a explicações simples. É um filme que levanta grandes questões e, acertadamente, não as quer responder, mas fomentar uma discussão nessa parábola ecológica sobre o processo de gentrificação de uma pequena comunidade cercada por um bosque e cervos que temem pessoas.
O título já coloca uma proposição que será central ao filme, embora nunca de forma explícita. O mal é intrinsecamente humano ou uma construção? Conforme Hamaguchi explora, humanos são seres sociais e, nesse microcosmo, ele monta um pequeno laboratório de investigação das dinâmicas humanas.
É um lugar onde todos se conhecem e vivem em harmonia na paisagem constantemente coberta por neve. As crianças podem ir para casa sozinhas depois da aula, já que não há nenhuma preocupação. O filme abre com imagens em um ângulo inusitadamente perpendicular, mostrando as copas das árvores, ao som da bela trilha de Eiko Ishibashi, que, em vários momentos, sofre cortes abruptos como se nos tirasse de um estado de meditação e jogasse numa realidade opressiva.
Em poucos minutos, estabelece-se a dinâmica da vida naquele lugar. Todos se conhecem e se dão bem. Até a chegada de dois relações públicas, Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), que chegam ao local para apresentar o conceito de glamping, uma combinação de glamurous e camping – ou seja, acampamento para gente rica.
A reunião entre os dois RPs e os moradores é um momento central, que rompe com a placidez de até então, colocando a possibilidade de deturpação daquele mundo. A cena é impressionante em mostrar o sentido de solidariedade entre os moradores contra o famigerado capitalismo corporativo que ameaça a vida ali. O que é muito interessante também é como o roteiro, assinado pelo diretor, em colaboração com Ishibashi, não vilaniza esses forasteiros, pelo contrário. Estão no limite com o trabalho ingrato que devem fazer, e o contato com essas pessoas pode ser a gota d’água para suas próprias transformações.
Entre os moradores, destaca-se Takumi (Hitoshi Omika, que foi assistente de direção de Hamaguchi em outros filmes), uma figura de liderança – embora ainda exista uma espécie de líder formal, um ancião sábio, cujas falas são ouvidas com enorme respeito. Takumi é pai de uma menina, Hana (Ryo Nishikawa), que se mantém como uma figura misteriosa no filme. Ela gosta da vagar pela floresta congelada e observar os cervos.
Há algo de hipnótico na forma como O mal não existe é construído. Não há pressa, e a narrativa se revela aos poucos, flutuando em seu ponto de vista – ora Takumi, ora os dois RPs – e acrescentando novas camadas em detalhes e texturas que compõem as imagens e a trama. Hamaguchi, aos poucos, nos lembra dos horrores de que os humanos são capazes, e recoloca o filme numa nova perspectiva exatamente na cena final, mudando inclusive o tom e o modo de narrar, pois quando o realismo já não dá conta da realidade, a fantasia se torna a saída formal que nos expõe camadas mais profundas da nossa existência. (Alysson Oliveira)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA BOURBON POMPÉIA
29/10/23 - 15:10
29/10/23 - 15:10
CINEMATECA SALA GRANDE OTELO
31/10/23 - 15:00
31/10/23 - 15:00
Zona de Interesse
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2023, este filme esplêndido comprovou a versatilidade do realizador inglês Jonathan Glazer de uma forma talvez inesperada - e no melhor sentido. Diretor de títulos de repercussão, como Sob a Pele e Sexy Beast, Glazer parte do livro homônimo de Martin Amis, para retratar o núcleo familiar de Rudolf Hoss (Christian Friedel) e sua mulher, Hedwig (Sandra Hüller, mais uma vez, esplêndida, como em Toni Erdmann).
Eficientíssimo administrador do campo de Auschwitz, Hoss tem uma casa-modelo, com amplos e cuidados jardins, bem ao lado do campo - que nunca é mostrado por dentro, apenas se ouvindo seus sons, como gritos, latidos de cães, além da onipresente fumaça que emana dos fornos que mancha o horizonte. Como em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, o filme coloca o foco os executores dos piores crimes, beneficiando-se deles sem qualquer impedimento ético, construindo seu drama com uma complexidade impecável, como um diagnóstico sobre a continuidade daquilo que Hannah Arendt tão bem definiu como “a banalidade do mal” ao radiografar a naturalidade amoral com que os perpetradores do nazismo planejaram e executaram a eliminação sistemática dos judeus em campos operados com a eficiência de uma sinistra linha de montagem. Novos massacres de nossos tempos, aliás, nos fazem pensar no ressurgimento incessante desse mal. (Neusa Barbosa)
CINEMATECA ESPAÇO PETROBRÁS
28/10/23 - 21:00
28/10/23 - 21:00
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 2
30/10/23 - 17:40
30/10/23 - 17:40
CINESESC
31/10/23 - 20:50
31/10/23 - 20:50
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