Berlim começa com comédia romântica que ironiza o romantismo
- Por Neusa Barbosa, de Berlim
- 16/02/2023
- Tempo de leitura 3 minutos
Berlim - Num ano em que a programação destaca assuntos espinhosos, como a guerra da Ucrânia e as violações à liberdade de expressão no Irã - onde diretores como Jafar Panahi e Mohammad Rasoulof têm sido presos por isso - , a Berlinale abriu sua 73ª edição com um filme mais leve, She Came to Me, uma comédia dramática romântica que desconfia do romantismo, como diria François Truffaut - mas nem tanto assim. O filme foi exibido fora de competição.
Num roteiro também assinado por ela, a diretora Rebecca Miller entrelaça vários imbróglios sentimentais: o do compositor de óperas Steven (Peter Dinklage), enrolado com sua própria crise criativa, o casamento hesitante com a psicóloga Patricia (Anne Hathaway) e um encontro inusitado com Katrina (Marisa Tomei), uma capitã de rebocador, original desde a profissão e mais ainda no comportamento. Paralelamente, outra intriga romântica, à la Romeu e Julieta, opõe os namoradinhos adolescentes Julian (Evan Ellison) e Teresa (Harlow Jane), ele, filho de Patricia, ela filha da faxineira dela, Magdalena (Joanna Kulig), todos contra o pai adotivo e reacionário de Teresa, Trey (Brian D’Arcy James).
Mulheres fora do padrão
É o tipo da história construída para cativar os sentimentos das plateias, que andam meio esquivas às salas de cinema no pós-auge da pandemia e o faz com sensibilidade e inteligência, criando personagens femininas com mais complexidade do que a média dos filmes deste gênero. Marisa Tomei é o centro de energia da história, construindo uma personagem inusitada, imprevisível, que manifesta traços de aparente insanidade mas evolui em muito mais sentidos do que ser a louquinha do pedaço. Um acerto em cheio de casting, investindo numa atriz madura, experiente e que não tem medo de se jogar numa história com tudo o que sabe, por mais modesta que ela seja.
Uma das produtoras do filme, Anne Hathaway também se arrisca a sair do padrão bonitinha/perfeitinha de Hollywood para viver uma psicóloga que esconde na mania de limpeza sua tentativa frustrada de controlar os conflitos de seus relacionamentos, com o marido especialmente. A estupenda Joanna Kulig, no entanto, tem um papel pequeno, abaixo de suas imensas possibilidades, vislumbradas no poderoso Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski, que teve três indicações ao Oscar 2018.
Na pele do compositor confuso, Peter Dinklage mostra, é claro, nuances completamente diferentes de seu premiado papel na série Game of Thrones, como o ambíguo Tyrion Lannister. Seu personagem em She Came to Me é o cúmulo da hesitação, da insegurança, o protótipo do macho mimado em crise que vai bater de frente com uma mulher de verdade, com uma força autêntica, ainda que ela se manifeste inicialmente de uma maneira questionável. Uma das melhores ideias do roteiro é indicar como “diagnóstico” de Katrina - não por acaso, nome de furacão - ser “viciada em romance”, tendo sido proibida, como terapia, de assistir comédias românticas por um ano…
Não é, certamente, o tipo de filme que vem para mudar a história do cinema, nem é esse seu propósito. O objetivo é contar uma boa história com algumas nuances, com personagens interessantes e comentar, de passagem, alguns aspectos da contemporaneidade: como se depreende do próprio enredo das óperas compostas por Steven e pela bizarra reencenação Confederada da qual participa o reacionário Trey. Não está fácil este mundo em que alguns se obstinam em procurar inspirações em passados autoritários.