Um mergulho crítico na masculinidade e uma estreia promissora
- Por Neusa Barbosa, de Berlim
- 19/02/2023
- Tempo de leitura 6 minutos
Berlim - A boa surpresa do primeiro domingo do festival veio sob a forma do concorrente ao Urso de Ouro Past Lives, em que a diretora estreante Celine Song demonstra uma notável habilidade no desenvolvimento de personagens e na fluidez de uma história com forte fundo autobiográfico, como a diretora comentou na coletiva desta manhã (19). O filme teve sua première mundial fora de competição no mais recente Festival de Sundance.
Como sua protagonista, Na Young/Nora (Greta Lee), Celine nasceu na Coreia e imigrou para os EUA, superando as dificuldades de adaptação, tornando-se dramaturga, e que teve um amor platônico de adolescência que ficou para trás. No roteiro, que ela também assina, essas características se ampliam para desenvolver uma espécie de triângulo amoroso, ao menos em tese, entre Nora, seu marido americano, Arthur (John Magaro), e esse amor platônico do passado, Huang Sung (Teo Yoo).
O filme desenvolve com muita habilidade estes sentimentos em suspenso entre Nora e Huang, que tiveram que separar-se com cerca de 13 anos, quando os pais dela resolveram imigrar para o Canadá. Posteriormente, ela enfrentou voluntariamente outra mudança, desta vez para Nova York, a fim de firmar-se como dramaturga.
É esta mulher, muito focada no próprio sucesso profissional, que é procurada pelo Skype pelo antigo amor de quase infância, estabelecendo um relacionamento à distância que permite que redescubram afinidades entre os dois. Mas há circunstâncias que as vidas de ambos, e suas respectivas escolhas, não permitem uma resolução assim tão simples, como um deslocamento de um ou outro para a Coreia do Sul ou os EUA. E, no meio do caminho, Nora também conhece Arthur e se casa.
Indiscutivelmente, há um toque romântico em tudo isso, mas a história não sucumbe a ele nem mergulha em qualquer pieguice. Até pela experiência da diretora como dramaturga, ela sabe desenvolver cada um de seus personagens com muitas nuances, que só acrescentam à identificação que cada espectador pode encontrar, numa história, afinal, muito universal independente de gênero e raça, como bem pontuou o ator Teo Yoo na coletiva.
O título do filme, Past Lives (Vidas Passadas), faz referência a uma noção coreana de que as afinidades entre as pessoas decorrem de seu encontro em vidas anteriores, o que é tratado como um vago elemento mágico, que soma atmosfera a um filme cheio delas.
Masculinidades tóxicas
Num momento em que tanto se fala em crise da masculinidade, Manodrome, estreia em língua inglesa do diretor sul-africano John Trengrove (de Os Iniciados, 2017), lança questões importantes com uma história tensa e violenta, sustentada por dois ótimos atores, Jesse Eisenberg e Adrien Brody.
Jesse é o protagonista, interpretando Ralphie, um jovem motorista de Uber, lutando contra dificuldades de toda ordem desde que perdeu o emprego e sua namorada, Sal (Odessa Young), está grávida de seu primeiro filho. Ele é um poço de tensões e contradições, carregando uma história familiar complexa, que o tornou incapaz de lidar minimamente com as emoções.
Através de um amigo, ele entra em contato com “Papai” Dan (Adrien Brody), líder de uma espécie de comunidade de homens avessos a relacionamentos ou incapazes de mantê-los - algo parecido com os chamados “incels” (celibatários involuntários). Dan é uma figura paternal, como um psicólogo, acolhendo estes homens problemáticos, de várias idades, que passam a viver juntos numa grande casa no subúrbio. Não fica muito claro qual o objetivo desse grupo, nem sua forma de sustentação - Dan, aparentemente, tem muito dinheiro. Mas a realidade é que o líder, acolhedor, reforça a auto-estima de seus clientes traumatizados, que abandonam sua vida para viverem juntos nessa comunidade.
Há uma sugestão no ar de que poderia tratar-se de algo mafioso, ou um grupo de extrema-direita, mas isso não se define assim. De todo modo, essa comunidade propicia uma fuga para diversas personalidades fragilizadas, que tiveram problemas anteriores com a lei, vício em drogas, doenças, etc. Todos homens, todos abandonando as famílias, como devotos de uma seita sem deuses à vista.
Ralphie sente-se atraído ao grupo, mas não consegue desligar-se da responsabilidade do iminente nascimento de seu filho. Ele tem, igualmente, sérias questões para encarar a própria sexualidade, manifestando uma personalidade profundamente fraturada. Sendo motorista, uma referência imediata é o Taxi Driver de Martin Scorsese. Ralphie parece mesmo um filho de Travis Bickle, o personagem vivido por Robert De Niro naquele filme, mas ainda mais problemático e explosivo. No entanto, é nítido que Scorsese delineou melhor sua história, com um contexto político que remetia à guerra do Vietnã e focando mais firme na psicose de seu protagonista.
Trengrove, por sua vez, deixa escapar entre os dedos a pujança de sua história, preocupando-se demais com as explosões de seu protagonista, parecendo não saber como concluir sua história - que é incômoda, tem sua força, mas desperdiça energia em muitos ensaios de final. O filme tem colaboração do cineasta e roteirista brasileiro Marco Dutra, aqui contribuindo com músicas da trilha sonora.
Glória e queda de um tenista
Da seção Berlinale Special, veio o sólido documentário Boom Boom Boris Becker. Dirigido pelo premiado documentarista norte-americano Alex Gibney (vencedor do Oscar por Um Táxi na Escuridão), o filme disseca várias camadas da personalidade do famoso tenista alemão, tricampeão em Wimbledon e vencedor de outros torneios, que experimentou uma queda estrondosa na maturidade, condenado à prisão na Inglaterra por sonegação e fraude fiscal (ele acabou cumprindo oito meses de uma sentença de dois anos e meio, sendo depois deportado da Inglaterra, o que o filme não conta, pois provavelmente foi concluído antes disso).
Gibney é um hábil entrevistador e decifra a personalidade de Becker, entrevistando-o em algumas ocasiões, a última delas 3 dias antes de sua prisão. Assim o fazendo, dá uma das melhores definições possíveis de Becker: considera-o um hábil contador de histórias, capaz de descrever seus principais rivais como personagens de cinema, o que deixa entrever que na descrição entra uma boa
dose de fantasia. Como é de se esperar, há várias sequências mostrando jogos de tênis, algumas das mais eletrizantes decisões de torneios disputados por Becker, contra rivais como John McEnroe (que é um dos entrevistados no filme), Stefan Endberg, Ivan Lendl e outros.
dose de fantasia. Como é de se esperar, há várias sequências mostrando jogos de tênis, algumas das mais eletrizantes decisões de torneios disputados por Becker, contra rivais como John McEnroe (que é um dos entrevistados no filme), Stefan Endberg, Ivan Lendl e outros.