21/01/2025

Diretores brasileiros de curta concorrente ao Urso de Ouro falam sobre seu filme


Berlim - Único concorrente brasileiro a um Urso de Ouro, na categoria de curtas-metragens, As Miçangas, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor (DF), aborda um tema espinhoso e importante, o aborto. Tendo no elenco as atrizes Pâmela Germano e Tícia Ferraz, o filme retrata a tensão que se estabelece entre essas duas personagens, que são irmãs, uma acompanhando a outra numa jornada difícil, de risco, dor e perigo. O filme tem ainda uma participação de Karine Teles, que contribui com sua voz para encarnar a mãe das duas moças, numa conversa ao telefone.

Nesta entrevista pelo whatsapp ao Cineweb, os diretores, que já preparam seus primeiros longas-metragens (Sangue do meu sangue, no caso de Rafaela, A Onça, no de Emanuel), comentam alguns dos principais aspectos de seu curta, suas escolhas temáticas e estilísticas, a importância de participar de um festival internacional e também das iniciativas de fomento à produção, como os editais da Cardume e do Fundo de Apoio à
Cultura do DF.


O curta de vocês aborta uma temática bastante urgente, o aborto - que aliás é tema de outro curta brasileiro aqui em Berlim, “Infantaria”, da Laís Araújo, na seção Generation 14Plus. como escolheram esse assunto?

Emanuel -
Antes mesmo de a gente decidir sobre o que ia falar, partimos do ponto de que a gente queria fazer um filme - quando falo “a gente”, cito especialmente as atrizes -, elas queriam fazer um filme em que se sentissem representadas tanto tematicamente quanto artisticamente. Chegar a essa temática veio de um fluxo muito natural mesmo a respeito de reflexões que a gente já estava tendo em alguns outros processos que desenvolvíamos no teatro. A gente vem de um grupo de teatro autoral, antes de transpor a nossa busca para o cinema. E sempre conversamos muito. Inclusive uma dessas conversas foi com a Emily - uma consultora/pesquisadora do roteiro e também a pessoa à qual a gente dedicou o filme.

Ela participa de um coletivo, o Mulheres Canábicas, e ela provocava e salientava na gente uma perspectiva de diálogo a respeito de discussões muito importantes através dessa perspectiva da redução de danos. Então foi muito natural chegar a esse lugar e entender que o aborto não é só uma temática atual e sim atemporal. E como esse foi um processo em que a gente dialogou muito, com todas as pessoas da equipe, foi muito surpreendente ver o tanto que o aborto foi algo que praticamente todo mundo tinha vivenciado em alguma instância, não necessariamente no sentido de ter feito um aborto mas de ter convivido com essa situação de uma forma muito íntima. Então esse é um filme que quer falar sobre a forma cotidiana em que essa prática se encontra na vida de muita gente e como uma prática tão cotidiana não encontra um vocabulário razoável na gente enquanto sociedade para ser debatida, vista.

É um problema de saúde pública e eu acho que a gente teve vários casos no ano passado que foram muito importantes para a gente tentar desenvolver, desencadear um debate saudável e razoável sobre isso, mas sempre ofuscado pela polarização. Nessa busca por uma temática atual, mas ao mesmo tempo atemporal, e mesmo global, porque eu acho que tem uma universalidade nisso, tudo isso atravessa esses nossos desejos principais, no sentido de sermos representados tanto tematicamente quanto artisticamente como também encontrando espaço para falar sobre algo com que a gente sabe que pessoas do mundo inteiro podem se relacionar.


Como a escolha do filme de vocês em Berlim impacta na sua carreira?

Rafaela - Esse reconhecimento é muito importante, ser selecionado para um festival que é tão competitivo, tão seletivo. Por outro lado, a gente vê como uma oportunidade de levar esse tema para um debate que seja na escala internacional. A gente sabe que é um festival que se abre a olhar para essas questões políticas e sociais que estão acontecendo em outras partes do mundo, então a gente fica muito satisfeito de ter esse espaço para mostrar um trabalho de várias pessoas que se dedicaram e ter um espaço em que o filme seja debatido para que questões muito específicas em relação ao tema do aborto sejam levadas em consideração.

Como aconteceu a participação da Karine Teles fazendo a voz da mãe ao telefone? Vocês a conheciam?

Emanuel - Em 2021, eu fiz a maestria de um roteiro de TV, na Escola de Cinema de Cuba, estava justamente desenvolvendo um projeto de longa-metragem que se chama A Onça. E depois dos primeiros seis meses presenciais, a gente pode eleger alguém para ser um consultor, a escola faz essa mediação com quem você escolhe. E como a Karine também é atriz, e uma atriz que me inspira não só pelo talento como atriz como como roteirista, é uma atriz que conseguiu se gerar oportunidades muito incríveis no cinema no próprio olhar autoral, ela sempre foi uma pessoa que me inspirou muito e acabou calhando de ela ser minha consultora quando eu estava já finalizando o projeto para entregar para a escola. Quando eu estava no auge das consultorias com ela foi justamente o momento em que a gente tinha começado a pré-produção de As Miçangas. Enfim, ela é maravilhosa, sempre muito aberta, muito disponível. O convite surgiu desse momento. Foi uma participação muito pontual, em que ela se colocou muito disponível para fazer com muito carinho, mas também uma participação muito argumental. Aquele breve momento com a mãe é muito importante.

O filme é todo elaborado em cima de tons que mudam, do realismo às metáforas - como a da cobra. Como vocês chegaram a isso?

Rafaela - Essa foi uma questão muito construída dentro de cada cena. A gente trabalha com um elemento que é a cobra, levando o espectador a ter algumas interpretações ao longo do filme que não se completam. Então, parece um filme sobre duas garotas, que podem ser um casal mas na verdade são duas irmãs, um filme sobre uma crise, que pode ser de um relacionamento, sobre uma cobra que coloca em perigo duas mulheres que estão numa casa isolada.. A gente fez isso muito conscientemente justamente para ir levando o espectador com a gente até esse clímax, em que a verdade da história é revelada e o que acontece é um aborto e aquela cobra está ali à espreita e esse bote nunca acontece. Essa foi a maneira que a gente encontrou de transpor para o espectador essa mesma tensão que está acontecendo ali, a tensão interna das próprias personagens, a expectativa de uma ação que vai acontecer, a realização do aborto, se aquilo vai doer, se vai dar certo, se elas estão em perigo ou não, se elas vão precisar sair dali, se vão precisar de um auxílio médico, o que pode acontecer já que elas estão isoladas. A maneira que a gente encontrou para transmitir essa sensação foi a presença dessa cobra

Vocês terem vencido um edital da Cardume foi essencial para a realização do filme. Contem mais sobre a importância dessas fontes de financiamento.

Emanuel - O aporte da Cardume foi resultado de um processo muito intenso e demorado. Quando a gente o recebeu, foi uma das grandes alegrias do ano passado. A gente já começou o ano com essa afirmativa e foi muito encorajador. No momento em que a gente está, no país em que a gente está, existe um desmonte ostensivo. Então quando a gente se deparou com a oportunidade que a gente estava tendo, a gente entendeu que
estava num espaço de muito privilégio. A Cardume faz um trabalho muito qualificado no campo dos curtas-metragens. Muitas vezes não se olha os curtas-metragens com a devida atenção, apesar de tocarem temas muito importantes, e a Cardume faz isso. E ao mesmo tempo a gente teve o aporte de uma política pública vital do DF, que é o FAC, o Fundo de Apoio à Cultura Então, através dessas duas iniciativas a gente conseguiu fazer esse filme com a completa consciência de que essas iniciativas são muito vitais e importantes para nós.

Crédito das imagens:

Still do filme - Joanna Ramos
Rafaela Camelo e Emanuel Lavor - Arquivo pessoal