21/01/2025

Diretor de “Propriedade”, da seção Panorama, discute seu filme em entrevista


Berlim - Um dos poucos longas brasileiros no festival alemão, selecionado para a seção Panorama, Propriedade, de Daniel Bandeira, retrata, com particular veemência a crise social, a luta de classes e a violência que brota da ausência de mediações apropriadas numa situação em que os empregados de uma fazenda cercam sua proprietária, Teresa (Malu Galli), quando ela tenta fugir em seu carro blindado.

Montador experiente e diretor de Amigos de Risco (que foi realizado em 2007 mas, por diversos acidentes de percurso, só chegou aos cinemas em 2022), o pernambucano Daniel Bandeira fala, em entrevista por e-mail ao Cineweb, sobre as circunstâncias deste seu segundo longa, cujo projeto veio sendo burilado há anos e que foi exibido antes em festivais brasileiros, como do Rio, Mostra de São Paulo, Aruanda e Tiradentes.



O enredo do filme começou a ser elaborado há 16 anos, ambientado num ambiente confinado. Teve alguma inspiração específica num caso real ou não?

Bandeira - O mote central do filme não veio de nenhum caso específico, mas de uma alegoria que sempre me pareceu próxima demais do cotidiano: o carro como fortaleza móvel, fronteira pessoal portátil de uma classe que se percebe intocável pelo mundo. Junte-se a isso meu gosto pessoal por histórias que se concentram em uma única locação e minha saída, então recente, de uma filmagem cheia de caminhadas e locações, como foi a do meu primeiro longa, Amigos de Risco. O desafio inicial veio daí, mas o discurso da polarização que vem pautando o Brasil desde o início dos anos 2010 acabou se infiltrando no filme e dando ao projeto seu formato final.

No centro da história, há o tema da incomunicabilidade entre as classes, disputando no mesmo espaço questões atávicas de dominação e poder – uma luta antiga e sem mediação. Ao retratar assim essas pessoas, você quis fazer uma metáfora dessas questões sócio-políticas que o Brasil vive hoje, com tanta urgência e violência?

Bandeira - Uma das coisas que mais me atraem no cinema de gênero é a sua ambivalência. Sua linguagem é voltada para o agora, para o efeito imediato e espetacular sobre a plateia. Esse impacto me interessa. Mas, como um cavalo de Troia, o gênero também pode trazer reflexão sobre elementos do mundo real, fora da tela, reconhecíveis para quem busca uma camada extra de apreciação. Um bônus de inquietação que vem a reboque do entretenimento.

Para encenar os conflitos, você precisou de vários atores em cena, em episódios de confronto e violência. Como foi extrair do grupo o tom que você desejava? Você ensaiou muito com o elenco ? Modificou seu roteiro em função de sugestões da equipe?

Bandeira - Atores possuem uma perspectiva única dos personagens e dos contextos que os movem. Sempre aprendo demais com meu elenco, mas gosto da interlocução e da dedicação exclusiva que a preparação de elenco proporciona. Em Propriedade, tive o privilégio de contar com o trabalho de Fábio Leal, ator e realizador de muita sensibilidade e inteligência. Ele aproximou a experiência e o destemor de Malu Galli com a disposição e a vivência pessoal do coletivo que interpreta o grupo de trabalhadores. O que no filme surge como um choque entre universos, foi tratado na preparação como amálgama e colaboração, não só ao longo dos meses de ensaio, mas também durante as filmagens. Eu tendo a uma certa impiedade com meus personagens, o que pode levar a uma certa monotonia na narrativa. Mas houve um caso emblemático em que a sinergia entre a equipe de figurino, elenco, preparação e direção mudaram o destino da personagem adolescente do filme de uma forma que impactou, para melhor, toda a estrutura do filme. Manter-se aberto à colaboração de uma equipe afinada é imprescindível.

Como a Malu Galli entrou no projeto e o quanto isso foi importante para viabilizá-lo?

Bandeira - Num primeiro momento, Malu surgiu em função de Teresa. Sempre me agradou a ideia de ter para essa personagem um rosto conhecido do grande público, alguém com quem o público já sentisse uma certa familiaridade. Mas Malu trouxe um destemor e uma disposição ao jogo que me surpreenderam, e foi aí que a Teresa surgiu em função de Malu. A complexidade que ela propunha a uma personagem de tantos confinamentos tirou a personagem do lugar de "donzela em perigo" e elevou a potência do filme.

A idéia do carro blindado como espaço privilegiado na história existiu desde o começo? Houve alguma dificuldade específica em filmá-lo, já que é um espaço muito pequeno? Como você resolveu isso?

Bandeira - Sempre quis que o público, ao acompanhar "o lado" de Teresa, sentisse o espaço físico do cinema como o interior do carro blindado. Por isso, o formato scope sempre foi uma preferência, mas ao mesmo tempo uma temeridade, por uma questão de mobilidade, recuo de câmera etc... O carro, inclusive, só chegou bem perto das filmagens e só então eu e Pedro Sotero, diretor de fotografia, pudemos fazer os testes definitivos. Resolvemos como ele próprio havia antecipado: Alexa para as externas e Red Scarlet, mais compacta, para as internas do carro.

Como conseguiram essa fazenda onde vocês filmaram, em São José da Coroa Grande ? O que ali te interessava mais como cenário ?

Bandeira - Chegamos ao Engenho Morim após várias viagens de pesquisa de locação da diretora de produção Juliana Calles (que agora deve ter um material bastante farto sobre os engenhos remanescentes de Alagoas ao Rio Grande do Norte). Havia, claro, demandas de logística e de estética da propriedade. Mas foi no Morim que todos nós, equipe e elenco, tivemos a sensação mais clara de "camadas superpostas de História" que queríamos que o filme. Tanto assim que eu e Kika Latache, produtora do filme, preferimos dedicar um tempo à adaptação do roteiro original a esse novo.

O filme já foi exibido em festivais brasileiros, no Rio, João Pessoa, Tiradentes. Você teve algum retorno das pessoas que o viram que te chamou a atenção? E em Berlim, espera alguma repercussão específica?

Bandeira - Surpresa e desnorteamento - são as reações que mais têm chamado a minha atenção até agora. Quem espera um thriller se surpreende com a tônica social - e vice-versa. Já o desnorteamento costuma vir da ambiguidade com que cada lado do conflito é abordado, o que vem gerando respostas de todos os tipos. A unanimidade vem na apreciação à qualidade técnica do filme, mérito de uma equipe afinadíssima e do gerenciamento dos recursos por parte de minhas produtoras, Kika Latache e Livia de Melo, da Vilarejo Filmes. (Propriedade, aliás, é o segundo projeto da Símio Filmes levado pela Vilarejo Filmes à Berlinale. O primeiro foi Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, na edição de 2015). Quanto ao público da Berlinale, me mantenho curioso. Creio que os códigos do thriller sejam compreendidos internacionalmente. E embora não tenha um passado colonial, creio que o público europeu possa identificar no filme a forma como a luta de classes se manifesta aqui, seja pelas relações desiguais de trabalho, pelas crises imigratórias etc.

O filme deve ter proximamente uma carreira em cinemas? Tem alguma data de estreia prevista?

Bandeira - Propriedade acaba de ser adquirido pela Loco Films, mas ainda não tem data de estreia nos cinemas.