Uma escritora apaixonada e um soldado que dança encantam Berlim
- Por Neusa Barbosa, de Berlim
- 20/02/2023
- Tempo de leitura 4 minutos
Berlim - A veterana diretora e roteirista alemã Margarethe von Trotta exerce mais uma vez seu gosto pela cinebiografia de mulheres notáveis - como fizera em Hannah Arendt (2012) e Rosa Luxemburgo (1986) - e repete seu estilo clássico e consistente no concorrente ao Urso de Ouro Ingeborg Bachmann - Journey into the Desert, em torno da poeta e escritora austríaca (1926-1973).
Interpretada pela talentosa atriz luxemburguesa Vicky Krieps (de Corsage), Ingeborg ganha vida, brilho e beleza num filme que procura trazer à tona vários textos literários mas centra-se mais no período em que a escritora envolveu-se numa relação complicada com outro escritor, Max Frisch (Ronald Zehrfeld), em 1958.
A maneira como Ingeborg se define em relação a esse homem intenso e possessivo dá uma das chaves de uma personalidade vibrante, independente e extremamente sensível, o que a torna suscetível a grandes mágoas - especialmente quando ela descobre que Frisch mantém um diário com largas descrições dela, como se fosse uma das personagens de suas peças teatrais.
Atriz de muitos recursos e nuances, Vicky Krieps mantém o interesse em sua personagem, composta com muita solidez, encanto e fragilidade, num filme de época de produção bastante bem-cuidada, em termos de figurinos e cenários.
Um contraponto à existência levada por Ingeborg e Frisch entre quatro paredes, seja em sua casa, em Zurique, seja nos salões literários que ambos frequentavam com muito sucesso, é a viagem feita pela escritora ao deserto, no Egito, juntamente com um jovem admirador, Adolf Opel (Tobias Samuel Resch), onde Ingeborg dá vazão a algumas de suas paixões, sem preconceitos. Essa mulher que adorava o sol, apesar de austríaca, preferiu adotar como sua casa a cidade de Roma, onde ela não parava de encontrar encantos e cujos habitantes, para ela, eram mais acolhedores e capazes de compreendê-la.
É sempre muito difícil trazer para a tela personalidades literárias, porque os textos, ouvidos assim rapidamente num filme, não têm como atingir a mesma densidade de uma leitura atenta. De toda forma, Vicky Krieps realiza mais uma composição bem-sucedida e pode ser cogitada para um prêmio de interpretação - um terreno em que ela tem fortes competidoras, como a coreano-americana Greta Lee, de Past Lives.
Disco Boy
Um dos concorrentes mais criativos e envolventes apresentados até aqui na competição, Disco Boy, é dirigido pelo estreante italiano radicado em Paris Giacomo Abbruzzese. Desde 2013, Abbruzzese começou a desenvolver este roteiro, que tem no seu centro um personagem que é uma estranha mistura entre soldado e dançarino, interpretado pelo ator alemão Franz Rogowski. Um personagem, diga-se de passagem, que o diretor encontrou na vida real, tornando-se o ponto partida de uma história que sofreu vários desenvolvimentos, no Cinéfondation de Cannes e também numa residência no Festival de Clermont Ferrand.
O enredo tem ao centro um imigrante bielorrusso, Aleksei (Rogowski), que viaja à Polônia e escapa clandestinamente para a França, para alistar-se na Legião Estrangeira - o que é garantia não só de trabalho como de um passaporte francês, ao final de cinco anos de serviço.
Depois de um duro treinamento, Aleksei é destacado junto com um grupo para uma perigosa missão na África, onde ele deve resgatar alguns reféns franceses aprisionados por um bando libertário, chefiado por Jomo (Morr Ndiyae). Nesse capítulo africano, o filme ganha novas camadas, entrando por caminhos inesperados, surreais, e que são muito bem-conduzidos dentro do enredo, com sequências visuais caprichadas, na fotografia assinada por Hélène Louvart, que realizou a mesma função no brasileiro A Vida Invisível, de Karim Aïnouz.
Visto em filmes como Em Trânsito e Undine, Franz Rogowski sustenta o admirável arco de evolução de seu personagem, que mantém solidamente o centro de uma história que envereda por questões políticas de uma forma que nunca perde de vista a complexidade humana de cada um dos personagens envolvidos. Por isso, Rogowski é também um forte candidato a um prêmio de atuação, concorrendo com a atuação extremada de Jesse Eisenberg em Manodrome.
A maneira como o filme alinha as trajetórias de Aleksei e dos personagens africanos - ainda se deve mencionar Udoka (Laetitia Ky), irmã de Jomo - é sua força narrativa, compondo uma das produções mais instigantes desta seleção.