Berlim resgata o brilho dos veteranos e aposta na solidariedade internacional
- Por Neusa Barbosa, de Berlim
- 15/02/2023
- Tempo de leitura 12 minutos
Com 19 filmes na competição principal, que valem premiação com o Urso de Ouro, o 73º Festival de Berlim dá a largada nesta quinta (16/2), procurando voltar a uma normalidade que a pandemia rompeu nos últimos três anos. No ano passado, o festival já voltara a ser presencial, mas ainda restringiu sua duração, exigindo testes diários de funcionários e participantes. Este ano, sem estas exigências, o festival atinge vitalidade máxima, com inúmeras mostras novas. A programação transcorre entre 16 e 26 de fevereiro.
A atração inaugural é a comédia romântica She Came to Me (foto), de Rebecca Miller, que será exibido fora de competição, numa sessão de gala no Berlinale Palast. No elenco, Peter Dinklage, Marisa Tomei, Joanna Kulig, Brian d’Arcy James e Anne Hathaway.
Na trama, o compositor Steven Laudden (Dinklage) é atormentado por um bloqueio criativo quando precisa terminar uma ópera que significa seu grande retorno na carreira. Por sugestão de sua mulher, Patricia (Hathaway), que foi antes sua terapeuta, ele parte em busca de inspiração e encontra bem mais do que imaginava.
A diretora Rebecca Miller frequentou a Berlinale anteriormente duas vezes: em 2016, na seção Panorama, com o filme O Plano de Maggie, e em 2009, com A Vida Íntima de Pippa Lee, que participou da competição pelo Urso de Ouro.
Júris
O júri internacional da competição de longas é presidido pela atriz norte-americana Kristen Stewart (foto), que terá a seu lado a atriz iraniana Golshifteh Farahani, a cineasta alemã Valeska Grisebach (diretora de Western), o cineasta romeno Radu Jude (vencedor do Urso de Ouro 2021 com Má sorte no sexo ou pornô acidental), a diretora de elenco norte-americana Francine Maisler, a cineasta espanhola Carla Simón (vencedora do Urso 2022 com Alcarrás), e o cineasta de Hong Kong Johnnie To (diretor de Infiltrado e Eleição).
Já o júri internacional de curtas - competição em que o Brasil tem o concorrente As Miçangas, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor - é integrado pelo montador romeno
C?t?lin Cristu?iu, o artista e diretor norte-americano Sky Hopinka e a diretora e roteirista alemã Isabelle Stever. 20 curtas concorrem nesta competição.
C?t?lin Cristu?iu, o artista e diretor norte-americano Sky Hopinka e a diretora e roteirista alemã Isabelle Stever. 20 curtas concorrem nesta competição.
De olho nos veteranos
Entre os diretores mais experientes da competição, figuram pratas da casa como a veterana alemã Margarethe von Trotta, uma das seis mulheres que disputam o Urso de Ouro este ano. Ela assina Ingeborg Bachmann - Journey Into the Desert (foto), uma livre cinebiografia da escritora austríaca, interpretada por Vicky Krieps, e que focaliza seu relacionamento com o arquiteto e escritor suíço Max Frisch (Ronald Zehrfeld). Apesar da longa carreira da diretora, de 81 anos, esta é apenas a segunda vez que ela concorre ao Urso de Ouro. A primeira vez foi em 1983, com Heller Wahn.
Outra diretora alemã é Angela Schanelec, conhecida por Eu Estava em Casa, Mas… (2019), e que compete com Music (foto). Prometendo ser mais um de seus filmes exigentes, o enredo transpõe o mito de Édipo para os anos 1980, deslocando seus personagens das praias da Grécia até Berlim. No elenco, Agathe Bonitzer (Uma Garrafa no Mar de Gaza), Aliocha Schneider e Frida Tarana.
Outro talento germânico é Christian Petzold, trazendo Afire, drama que retrata um grupo de amigos em férias no mar Báltico e que se vêem cercados por incêndios florestais. No elenco, Paula Beer (de Undine), Thomas Schubert, Enno Trebs e Langston Uibel. Esta é a sétima vez que o diretor, de 62 anos, entra na competição berlinense, tendo vencido o Urso de Prata em 2012 com Barbara e o prêmio da Fipresci em 2020 com Undine.
No time francês, mais um veterano, Philippe Garrel disputa com Le Grand Chariot (foto), drama estrelado por seus filhos, Louis, Esther e Lena, interpretando um trio de irmãos que tenta manter o legado de seu pai à frente de uma trupe mambembe de teatro de bonecos. É a segunda vez que Garrel está no páreo da competição, tendo estreado nela em 2020, com O Sal das Lágrimas.
Outro concorrente francês é Nicolas Philibert, trazendo o documentário Sur l’Adamant, registrando o cotidiano de uma unidade flutuante de atendimento psiquiátrico que funciona sobre o rio Sena, em Paris. O diretor do celebrado Ser e Ter (2002) é outro estreante na competição em Berlim.
Voltando ao circuito, o diretor australiano-holandês Rolf De Heer, conhecido por obras como Bad Boy Bubby (1993) e O País de Charlie (2013), entra em campo com The Survival of Kindness. Trata-se de uma narrativa alegórica do racismo, acompanhando a saga de uma mulher negra, abandonada numa jaula no meio do deserto, de onde ela escapa para atravessar vários outros lugares e desafios pela sobrevivência. É a terceira vez que o diretor compete pelo Urso de Ouro.
Um dos raros títulos ibero-americanos, Mal Viver (foto), é a primeira disputa do Urso de Ouro do português João Canijo (de Fátima e Sangue do Meu Sangue). O enredo registra a luta de cinco mulheres para manter o hotel que herdaram. No elenco, Anabela Moreira, Rita Blanco e Madalena Almeida.
Outra estreante na disputa é a mexicana Lila Avilés, 41 anos, que assina Tótem, único representante latino-americano da competição. Uma coprodução entre México, Dinamarca e França, o filme acompanha a jornada de Sol (Naíma Sentíes), menina de 7 anos que passa o dia na casa do avô, ajudando nos preparativos da festa-surpresa de seu pai. Mas, ao longo do dia, o caos invade e subverte as expectativas.
Brasileiros
Mais uma vez, o Brasil tem uma participação modesta e fora da disputa do Urso de Ouro de longas. Na competição de curtas, porém, como no ano passado, o Brasil tem um candidato, As Miçangas (foto), de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor. Estrelado por Pâmela Germano e Tícia Ferraz, com uma participação sonora de Karine Teles, o filme aborda uma história de aborto.
Na seção Panorama, comparece o longa Propriedade, de Daniel Bandeira, já exibido no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo. O cineasta pernambucano, que tem uma longa trajetória como montador e estreou na direção com Amigos de Risco (2007), assina um drama forte, retratando o conflito entre os empregados rebelados de uma propriedade rural e sua dona, Teresa (Malu Galli), que se tranca num carro blindado, cercada por eles. O impasse é mantido ao longo da história, que remete a situações atávicas no Brasil, de exploração do trabalho, direitos, violência e segurança. No elenco, Tavinho Teixeira, Zuleika Ferreira e Samuel Santos.
Na seção Generation 14Plus, o representante nacional é o curta Infantaria, da diretora alagoana Laís Santos Araújo. Com uma direção de arte cuidadosa e um clima entre o realista e o onírico, o filme acompanha a festa de aniversário da menina Joana, que deseja ansiosamente ter sua primeira menstruação, para virar “mocinha”. Dudu, seu irmão, tumultua o quanto pode a ocasião e manifesta toda sua fixação num pai distante, que é militar. A chegada de uma adolescente, Verbena, perturba o clima da festa e dá pistas sobre a verdadeira profissão da mãe de Joana - aborteira -, disparando tensões que o filme retrata de forma sutil e intensa.
No Cine Ceará, que ocorreu em outubro último, Infantaria colheu os prêmios de melhor curta para o júri da Abraccine - Associação Brasileira dos Críticos de Cinema e também o de melhor direção para o júri oficial. Antes disso, fora exibido no Olhar de Cinema de Curitiba. Em Berlim, o filme terá sua première internacional.
Na Forum, foi selecionada a coprodução Brasil/França O Estranho, de Flora Dias e Juruna Mallon, tendo no elenco Larissa Siqueira, Antônia Franco, Rômulo Braga, Patrícia Saravy e Thiago Calixto. O enredo gira em torno do aeroporto de Guarulhos, remetendo ao fato de que foi construído em território indígena. Segue-se a trajetória de uma mulher, Alê, uma funcionária de pista, cuja história familiar foi sobreposta pela construção do aeroporto. As memórias e o futuro dela e de seus companheiros estão permeados por uma questão comum: rastros de um passado em um território em constante transformação.
Na Forum Expanded, tem-se uma coprodução Brasil/Espanha, A árvore, de Ana Vaz, constituindo-se de um filme-meditação de 30 minutos sobre o pai da artista, tecendo uma ligação entre geografias, tempos, os mortos e os vivos em torno de uma espada metálica - a montagem - , inspirando-se no cineasta experimental norte-americano Bruce Baillie.
Na seção Forum Special, entre 8 títulos antigos e restaurados, incluiu-se o drama brasileiro A Rainha Diaba, de Antonio Carlos de Fontoura (1973), estrelado por Milton Gonçalves como a personagem-título, livremente inspirada no famoso Madame Satã.
Da seção paralela Perspektive Deutsche Kino, faz parte ainda Ash Wednesday (Quarta-feira de cinzas), um média-metragem produzido na Alemanha e dirigido pelos brasileiros João Pedro Prado e Bárbara Santos. O filme retrata uma situação de racismo e violência policial numa favela carioca.
Atrações especiais
Fora da competição, não faltam atrações à vasta e variada programação da Berlinale. Na seção Berlinale Special, deve atrair muita atenção o documentário Love to Love You, Donna Summer, dirigido por Roger Ross. Celebrando o centenário Disney, o presidente do estúdio, Clark Spencer, reuniu uma seleção especial dos hits curtos em 100 Years of Disney Animation.
Na seção Encounters, destaca-se Eastern Front, de Vitaly Mansky e Yevhen Tirarenko, um dos vários títulos do festival que contemplam a Ucrânia - um dos países em foco na programação, ao lado do Irã, por seus atuais problemas referentes à guerra e aos direitos humanos. Também sobre a Ucrânia é o documentário Superpower, dirigido por Sean Penn e Aaron Kaufman, que será exibido numa sessão de gala especial da Berlinale.
O Irã é lembrado, por exemplo, no filme de abertura da seção Perspektive, Seven Years in Iran, de Steffi Niederzoll, um documentário que resgata a história de uma jovem estudante que foi executada, depois de 7 anos de prisão. Ela havia matado um homem que tentou estuprá-la e, para escapar da sentença de morte, teria tido que abrir mão de sua alegação sobre o estupro.
Alguns títulos da Perspektive são filmes com alguns anos de realização, caso de A Hologram for the King, de Tom Tykwer (de Corra, Lola, Corra), feito em 2016, protagonizado por Tom Hanks, como um executivo que procura vender um sistema de teleconferências para o rei da Arábia Saudita.
Na Berlinale Special, uma seção não-competitiva, aguardam-se as premières mundiais de do aguardado Golda, de Guy Nattiv, com a atriz Helen Mirren no papel da falecida primeira-ministra israelense Golda Meir; e os italianos L’ultima Notte di Amore, de Andrea Di Stefano, com Pierfrancesco Favino e Linda Caridi, e o documentário Laggiú Qualcuno mi Ama, de Mario Martone, sobre o ator Massimo Troisi, o inesquecível intérprete de O Carteiro e o Poeta. Um outro documentário desta seção recorda outra dilacerante guerra na Europa: Kiss the Future, de Nenad Cicin-Sain (EUA/Irlanda), retrata o drama da população de Sarajevo na Guerra da Bósnia e a atuação do voluntário Bill Carter que resultou no engajamento da banda U2 em seu benefício.
Clássicos
Como todo festival de primeira linha, não poderiam faltar clássicos numa programação especial. Oito clássicos restaurados compõem o principal desta seção, com destaque para Casamento ou Luxo (Woman of Paris), de Charles Chaplin, título que está completando 100 anos. Completam a seleção Sogni d’Oro, de Nanni Moretti (1981), Mistérios e Paixões (Naked Lunch), de David Cronenberg (1991), Adivinhe quem Vem para Jantar, de Stanley Kramer (1967), Mapantsula, de Oliver Schmitz (1988) - primeiro filme sul-africano a integrar esta seção -, Yoru no Kawa (Undercurrent) (1956), de Kozaburo Yoshimura, Romeo and Juliet in the Village, de Valerien Schmidely e Hans Trommer (1941), e Szürkület, de Gyorgy Féher (1990).
Outras informações estão disponíveis no site do festival.
Crédito das imagens
She came to me - Protagonist Pictures
Kristen Stewart - Divulgação
Ingeborg Bachmann - Journey Into the Desert - Wolfgang Ennenbach
Music - faktura film / Shellac
Le Grand Chariot - Benjamin Baltimore / 2022 Rectangle
Mal Viver - Midas Filmes
As Miçangas - Joanna Ramos