08/09/2024

Um dia de jornadas exaustivas em Cannes


Cannes – Se o primeiro dia da competição entusiasmou Cannes com o refinamento estético e narrativo, além da delicadeza de Monster, de Hirokazu Kore-eda, o segundo dia já reduziu bastante as expectativas. Decepcionante, especialmente, a passagem do drama Black Flies, em que o diretor francês Jean Stéphane Sauvaire escala Sean Penn e Tye Sheridan à frente do elenco de um filme que retrata o universo dos paramédicos de Nova York.

Não há originalidade na abordagem de um ambiente já muito retratado, e com mais brilho e propriedade, em muitos outros filmes – caso de Vivendo no Limite (1999), de Martin Scorsese, em que Nicolas Cage era o protagonista. O personagem de Penn, Rutkovsky, é um desses paramédicos veteranos, atormentados e disfuncionais que, junto ao seu parceiro novato, Cross (Tye Sheridan), percorre à noite os piores becos de Nova York para socorrer as emergências mais extremas.

O diretor apóia-se numa estética de pesadelo, com efeitos de luz um tanto nostálgicos inclusive na forma – na fotografia de David Ungaro -, para reproduzir o tormento interior destes homens jogados à posição de intermediários com os setores mais renegados da sociedade – criminosos, dependentes químicos, doentes mentais, moradores de rua, desvairados, vítimas de violência doméstica e também de acidentes. Mas Sauvaire não consegue aprofundar o perfil de nenhum destes personagens, culminando numa obra que investe muito em cenas de sangue – que poderiam ter a intenção de apelar ao naturalismo, mas na verdade remetem mais a uma estética do choque e do excesso.

Não salva a situação nem mesmo a boa atriz Katherine Waterston, fazendo uma ponta como a ex-mulher de Rut – interpretado por Penn com uma amargura num registro quase único. O bom ator Sheridan também parece investido apenas de uma grande vontade de acertar, mas o projeto geral não decola. O filme parece estar na competição mais por conta do prestígio do elenco, Penn especialmente – que, lembrando Nicolas Cage, já viveu bem melhores dias em sua carreira.


Documentário chinês
O prestigiado cineasta chinês Wang Bing apresentou por aqui Jeunesse (Juventude), um documentário de 3 horas e meia que radiografa o mundo do trabalho nas confecções de uma região da China. Bing coletou seu material por cinco anos – de 2014 a 2019 – para compor este retrato um tanto crítico tanto de uma geração de jovens trabalhadores quanto de um importante setor da economia de seu país. Mas é evidente que seu foco está no aspecto humano de toda esta engrenagem.

De maneira intensa e até exaustiva, o cineasta expõe as condições dramáticas deste trabalho, na maioria executado por jovens na casa dos 20 anos – mas há mesmo uma adolescente de 16 entre eles –, que se esgotam em exaustivas jornadas para atender às demandas de seus patrões, que lhes repassam suas pressões por encomendas e prazos. São jovens que vieram do campo, de regiões mais ou menos próximas, e que moram no mesmo local da fábrica, em alojamentos superlotados, em condições higiênicas precárias. Terminada a temporada de trabalho, eles voltam às suas casas, para retornar na próxima convocação.

A precariedade da vida e dos sonhos destes jovens, que abandonaram a escola e tentam ganhar a vida, de várias maneiras aproxima este filme do documentário brasileiro Estou me guardando para quando o Carnaval chegar (2019), de Marcelo Gomes, evidentemente em outro contexto. Mas as afinidades são grandes numa reflexão do quanto é escassa a possibilidade de todos estes jovens trabalhadores da indústria têxtil, na China ou no Brasil, terem alguma utopia pessoal ou projeto de outro futuro. Suas relações de amizade ou sexo e mesmo seu lazer são confinados ao próprio alojamento, onde eles se dedicam a brincadeiras físicas uns com os outros, como crianças - parecem mesmo meninos e meninas cuja infância não terminou e já são lançados numa dura jornada de sobrevivência. As condições em que vivem apenas garantem um sustento precário, como se diz, “da mão para a boca”, sem que se descortine alguma possibilidade de melhora.

No filme de Bing, há diversos momentos em que os trabalhadores negociam com seu patrão o pagamento das peças que produzem, em massa e rapidamente, dentro de padrões estritos. Mas parece não haver muitas opções para quem trabalha no setor, a não ser trabalhar para outro patrão, em contextos e condições bastante semelhantes. O fato de que haja mães e filhos trabalhando juntos apenas aponta para a continuidade do processo. O neoliberalismo está mesmo exercendo seus tóxicos efeitos em toda parte. E, com seu filme, exaustivo como é também para quem assiste, Bing parece estar se interrogando sobre qual pode ser, afinal, o futuro não só da China, como do mundo.