08/09/2024

As delicadas emoções de Kore-eda entusiasmam Cannes


Cannes -
O premiado diretor japonês Hirokazu Kore-eda volta a um território conhecido, o mundo infantil, em seu novo filme, Monster, em que ele faz uma multifacetada incursão no tema do bullying e dá uma guinada no seu estilo, realizando uma obra que remete a nada menos do que Rashomon, de Akira Kurosawa - no sentido de oscilar o ponto de vista dentro da narrativa -, seguindo a melhor tradição do cinema daquele país.

A palavra “caleidoscópio” se aplica e muito na maneira como Kore-eda entra neste universo, primeiro enfocando uma mãe solo (Ando Sakura) e seu filho, Mugino Minato (Soya Kurokawa), depois seu professor, o sr. Hori (Eita Nagayama), um outro colega de escola do menino e a diretora da escola. Ao deter-se com cada um destes personagens, Kore-eda nos instiga a pensar e sentir várias coisas, moldando sensações que vão mudando à medida que conhecemos as razões de cada um dos envolvidos.

Órfão de pai criado pela mãe, Mugino está experimentando crises emocionais que a preocupam e a levam a procurar a escola. Supostamente, o garoto foi vítima de violência por parte do professor, o sr. Hori, mas depois outras possibilidades se apresentam. Mugino pode ser o agressor do outro menino ou até vice-versa. E a diretora, de quem se espera a mediação destas graves crises em sua escola, parece anestesiada por uma grande dor, a morte de sua neta, em que está envolvida também a questão da mentira e da responsabilidade.

Cineasta habilidoso e delicado, Kore-eda é capaz de extrair camadas e mais camadas de diversas situações que nos põem em contato com particularidades da cultura japonesa, ao mesmo tempo que consegue criar conexões emocionais que as tornam universais. Por isso seus filmes costumam causar grandes emoções, inclusive lágrimas.
Mas é mais de reflexão que se trata. Tocando seu público na sensibilidade humana, Kore-eda nos leva a compartilhar das indagações e conflitos dos vários personagens, levando-nos a colocar-nos na pele da mãe solo, do professor acusado, dos meninos que se sentem deslocados e sem diálogo com os pais. E coloca em foco uma sociedade, a japonesa no caso, em que a expressão e o compartilhamento de emoções é tão difícil. Kore-eda sempre põe o dedo nessa ferida.

O diretor, habituê de Cannes, já tem uma Palma de Ouro por Assunto de Família (2018), mas muita gente já sentiu que este novo filme bem poderia levar uma segunda.


Mulheres de família
O primeiro concorrente francês foi Le Retour, em que a diretora Catherine Corsini retorna ao melodrama - que ela frequentou em A Fratura (2021) e Um Amor Impossível (2018) - com um pouco mais de leveza. No centro da trama, uma família de mulheres, formada por Khedidja (Aissatou Diallo Sagna) e suas duas filhas. Ela deixou a Córsega, abandonando o marido, quando as meninas eram pequenas e volta, muitos anos depois, para trabalhar como babá nas férias na casa de um casal seu conhecido (Virgine Ledoyen e Denis Podalydès).

Há um drama envolvido em sua fuga, que ela encobre das filhas neste retorno, que expõe a pequena família a diversos choques com o novo ambiente - inclusive o racial, para estas mulheres negras, num microcosmo marcado por inúmeras contradições..

As duas filhas, com suas personalidades opostas, fornecem a chave para que a história caminhe. Jessica (Suzy Bemba), a mais velha, é séria, estudiosa e vai cursar uma universidade de prestígio. Farah (Esther Gohourou), a caçula, não gosta de estudar, mas é esperta e se torna uma surpresa dentro do filme, dadas as camadas que esta jovem atriz é capaz de extrair de sua personagem.

Cobrindo uma vasta gama de assuntos, inclusive a homossexualidade feminina - o filme concorre também à Palma Queer -, esta é uma história envolvente, apesar de alguns excessos, comuns à diretora. O trio principal de atrizes, especialmente, é uma força que dá autenticidade ao retrato deste pequeno e autêntico núcleo familiar.


Lembranças de guerra
Fora da competição, o diretor britânico Steve McQueen voltou ao documentário - que ele havia visitado brilhantemente em Small Axe (2020) -, agora
com o contundente Occupied City.

Em alentadas quatro horas e meia, o cineasta resgata episódios e personagens da Amsterdã ocupada pelos nazistas, nos anos 1940, que culminou num massacre de judeus numa proporção particularmente alta - havia ali cerca de 800.000, dos quais morreram cerca de 600.000, ali mesmo ou em campos de concentração.

Apoiado nas pesquisas rigorosas de sua mulher, a roteirista holandesa Bianca
Stigter, McQueen recorda nomes tanto de vítimas, quanto dos resistentes, quanto de seus algozes, a partir de endereços da capital holandesa. O estilo escolhido pelo diretor é de repetição e
acúmulo, mas esta é uma estratégia. Não importa que o público não seja capaz de guardar os nomes nem decorar os fatos mencionados, e sim que seja capaz de absorver o processo, observando as conexões da História, as ligações do passado com a contemporaneidade, igualmente dramática. Não são por acaso as imagens do lockdown da pandemia, da repressão policial aos manifestantes contra ele e contra a vacina, nem os rostos de refugiados que procuram na Europa alívio para tantas guerras que abalam seus lugares de origem.