Karim Aïnouz atualiza o som e a fúria do século XVI no drama "Firebrand"
- Por Neusa Barbosa, de Cannes
- 22/05/2023
- Tempo de leitura 4 minutos
Cannes - Neste domingo (21), o diretor brasileiro Karim Aïnouz, que apresentou o drama histórico britânico Firebrand, uma história cheio de som e fúria que coloca em primeiro plano Catherine Parr (Alicia Vikander), sexta e última esposa do tirânico rei Henrique VIII (Jude Law, quase irreconhecível com tanta maquiagem, figurino e próteses).
Primeiro filme do cineasta cearense falado em inglês, Firebrand guarda, no entanto, a assinatura de Karim, um diretor com profunda sensibilidade para personagens femininas, como se atesta em filmes como O Céu de Suely e também em A Vida Invisível, com o qual ele ganhou a seção Un Certain Regard em Cannes em 2019. Karim, aliás, tem uma longa história com Cannes, que começou em 2002, quando ele apresentou por aqui Madame Satã, que lançou o ator Lázaro Ramos num outro patamar.
Como em A Vida Invisível, Karim repete a parceria com a diretora de fotografia francesa Héléne Louvart, o que garante aqui também uma atmosfera de intensidade em tons vermelhos, trazendo para o centro da história a intimidade de uma família, que é também a família real. Mas o diretor, evidentemente, está mais interessado na carne e no sangue desses personagens, nas motivações que os levam a agir, do que nos rituais e figurinos da monarquia - que entram com o devido cuidado na história mas não a dominam, mantendo a vitalidade da narrativa em dia.
Várias vezes, e também na coletiva nesta segunda (22), Karim repetiu que enxerga em seu filme um thriller, mais do que apenas uma produção de época - e ele está completamente certo. O enredo coloca em primeiro plano essa mulher, Catherine Parr, que não tinha sangue azul e foi uma pioneira em vários sentidos - inclusive publicou sob seu próprio nome o primeiro livro escrito por uma mulher em inglês. Era duas vezes viúva quando se casou com Henrique VIII, um homem que havia tido cinco outras esposas antes e mandado executar duas delas. O clima de ameaça e medo, portanto, era muito real para Catherine, e o filme passa isso muito bem.
Na coletiva, Karim contou ter assistido vários filmes de terror, revendo títulos como Carrie, a Estranha e O Iluminado, além de produções de época como Fausto, de Alexander Sokurov, entre outros, que o ajudaram a conectar no clima que pretendia imprimir à sua obra.
Por tudo isso, e também pelo histórico deste diretor, Firebrand conecta diretamente com a nossa época, ainda assombrada por governantes tirânicos, violência doméstica, machismo tóxico, todos eles temas que conduzem a história. A própria Alicia Vikander destacou, na coletiva, que não acredita que “em 500 anos as emoções mudaram tanto assim”. E ressaltou como “cada momento é frágil para minha personagem, já que a cada segundo este homem podia surtar”. Ou seja, a primeira tarefa de Catherine, em primeiro lugar, era pura e simplesmente sobreviver ao marido, naquele momento já velho, doente e cada vez mais impotente e obcecado pelo ciúme e por intrigas cortesãs reais ou imaginárias.
Indagado por um jornalista brasileiro se via conexão entre Catherine e Dilma Rousseff, no sentido de seu afastamento do poder, Karim respondeu: “Não pensei em Dilma, mas pensei em alguém como o Bolsonaro - em cujo governo jamais voltei ao Brasil. Inconscientemente, havia algo em mim que pensava num ditador. Quando a extrema direita vence uma eleição, a gente é levado a pensar no que é uma democracia”.
Não foi a única alusão política feita pelo diretor brasileiro, que é radicado há anos em Berlim. Na sessão de gala do filme, na noite de domingo, ele gritou: “Viva o Brasil, viva Lula, viva o cinema brasileiro, viva a Argélia” ( o pai de Karim é argelino).
Documentário no Recife
Fora de competição, o diretor brasileiro Kléber Mendonça Filho - vencedor de um Prêmio do Júri na competição 2019 com Bacurau - apresentou por aqui o documentário Retratos Fantasmas.Trata-se de um instigante retrato sobre endereços da cidade do Recife, partindo da própria casa familiar do diretor, no bairro de Setúbal, que também se relaciona à história de várias mudanças urbanas na capital pernambucana, especialmente vários cinemas de rua, hoje quase todos fechados, com exceção do belo São Luiz - que sobrevive graças à gestão pública da sala. Em Recife, como no resto do mundo, a especulação imobiliária tudo devora.
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