08/09/2024

Nanni Moretti e Tran Anh Hung levam humor e gastronomia a Cannes


Cannes -
Já caminhando para sua reta final, Cannes assistiu nesta quarta-feira dois concorrentes à Palma que apelaram ao humor, à beleza e à suavidade, imprimindo novos tons a uma competição que tem se mostrado diversificada, acirrada e, por isso, um tanto imprevisível.

Conhecido pelo poético O Cheiro da Papaia Verde (1993), que lhe deu o prêmio Caméra d’Or aqui, o vietnamita Tran Anh Hung ofereceu um deleite para os sentidos com a produção francesa La Passion de Dodin Bouffant (Pot au Feu), em que Juliette Binoche e Benoît Magimel interpretam um casal unido pela culinária no século XIX. Ela é Eugénie, sua cozinheira e também amante que recusa o casamento. No belíssimo castelo dele, Dodin, em Anjou, eles se empenham em seus duelos gastronômicos, produzindo banquetes para os amigos dele.


Adaptando um romance dos anos 1920, de Marcel Rouff, o cineasta compõe um filme que aposta decididamente no apuro visual destes pratos que se sucedem à mesa, consumidos por estes gourmets apaixonados, que parecem fazer destes acepipes uma razão de viver.

Evidentemente, salta aos olhos todo o sentido metafórico nesta fruição de sabores e também neste jogo entre Eugénie e Dodin, duas pessoas maduras, como eles mesmo dizem, vivendo o outono da vida - mas, dentro de Eugénie, vive uma paixão que ela compara a um verão permanente.


Mas permanente mesmo só esse desfile de pratos requintados em seu preparo, numa espécie de “festa de Babette” constante - evocando mais este delicado filme de 1987, de Gabriel Axel, do que outros girando em torno de comida, como o impactante A Comilança, de Marco Ferreri.

De todo modo, Anh Hung consegue criar uma atmosfera iluminada em torno destes dois atores fazendo seu jogo com maestria, com uma fotografia (Jonathan Ricquebourg) e desenho de produção (Toma Baqueni) que sustentam todo o projeto de maneira envolvente. Mais do que nos diálogos, não raro escassos, o filme aposta na magia das sensações visuais. E é tão eficiente nisso que dá quase para sentir os cheiros dessa cozinha que produz tantos prazeres compartilhados.


Diário de Moretti
Com a comédia doce-amarga Il Sol dell’Avvenire, o veterano italiano Nanni Moretti - vencedor da Palma de Ouro 2001 com O Quarto do Filho
- volta à sua melhor forma, compondo um diário em que mistura a crise da meia-idade de um cineasta (ele mesmo), a derrocada de seu casamento com sua produtora, Paula (Margherita Buy) e também suas memórias sobre a crise no comunismo italiano em 1956, quando canhões soviéticos invadiram a Budapeste rebelada, o que é o tema de um filme dentro do filme.

O humor de Moretti não é rasgado, é sempre irônico, um pouco melancólico e autorreferente, mas aqui essa receita deu bem mais certo do que errado. Isso acontece quando esta persona cinematográfica que ele compõe adquire vida, corpo e alma em suas contradições e chatices (porque ele é um grande chato), mas também enseja uma solidariedade, vibrando notas semelhantes em seu público.

É um filme modesto, sim, mas tem pelo menos uma sequência final grandiosa, com um grande desfile, juntando seus atores, personagens antigos e o próprio Moretti, numa parada que homenageia o melhor de Federico Fellini, por exemplo. Só esta cena já vale o filme.