21/05/2025

Entre o naturalismo de Bellocchio e a excentricidade de Wes Anderson


Cannes - Terça-feira foi o dia da passagem de dois pesos-pesados na competição, o norte-americano Wes Anderson com mais um produto de sua confecção peculiar em Asteroid City, e o veteraníssimo italiano Marco Bellocchio, resgatando com elegância e andamento
clássico uma história de abuso de poder e religião na Itália em processo de unificação do século XIX em Rapito.

Recheado de astros de Hollywood, o filme de Anderson, como de hábito, é do tipo “ame ou odeie”, reunindo aquela série de excentricidades sofisticadas que dão o tempero de suas histórias. Resumindo, acompanha-se os bastidores da criação de uma peça de teatro, a que dá nome ao filme, em que os espectadores do cinema são levados a compartilhar das incertezas e pressões de seu autor (Edward Norton).


Ao mesmo tempo, somos lançados no cenário de sua história, ambientada nessa Asteroid City ficcional, em que um fotógrafo viúvo (Jason Schwartzmann), seus quatro filhos e seu sogro (Tom Hanks) páram devido a um defeito no carro. Mas eles e outras pessoas, como uma atriz (Scarlett Johansson), sua filha e outros, terão de deter-se ali indefinidamente depois da aparição súbita de um extraterrestre - este, um ponto alto dos efeitos e da direção de arte do filme.

Pode-se imaginar o efeito desta aparição extraordinária na vida destas pessoas, obrigadas a uma quarentena sem orazo para terminar, o que dá o pretexto para que Anderson ironize muitos aspectos da vida norte-americana - como o militarismo (Jeffrey Wright interpreta um general), os meninos prodígios, o culto às celebridades, tudo isso revestido daquela nota sutil com que o diretor impregna seus comentários irônicos e poéticos. Isso implica, é claro, num grande artificialismo, sem o qual os universos andersonianos não podem existir na tela. E essa é a chave das grandes paixões e aversões que o diretor provoca. Seus filmes sempre precisam de uma atenção redobrada às referências, ou seja, precisam de bula, ainda que quase sempre apontem para metáforas espertas e bem-sacadas. Mas sua excentricidade formal poderá, quem sabe, agradar a um júri presidido por um diretor do calibre do sueco Ruben Östlund.

No elenco recheado de estrelas, em que comparecem Bryan Cranston, Adrian Brody, Matt Dillon, Margot Robbie e outros em pontas, nota-se a participação do cantor e compositor brasileiro Seu Jorge, interpretando um cowboy. Na coletiva do filme, o diretor Wes Anderson comentou sobre sua grande amizade com o cantor brasileiro, cujos shows acompanha sempre que ele se apresenta nos EUA, lembrando ainda que ele tornou o set mais agradável fazendo música nos fundos do hotel à noite.


Sequestro papal
Bem calcado no naturalismo, Marco Bellocchio apossou-se com a sua habitual contundência de uma história real do século XIX, conduzindo em Rapito um relato reflexivo e emocionalmente engajador. A incrível história baseia-se em fatos reais, ocorridos na Bolonha de 1858. A mando do Papa Pio IX (Paolo Pierobon), o menino judeu Edgardo Mortara (o impressionante Enea Sala, que tinha 5 anos nas filmagens) foi arrancado de sua família, aos 6 anos de idade, por ter sido supostamente batizado em segredo por sua babá. Por anos, seus pais (Fausto Russo Alesi e Barbara Ronchi) lutaram por todos os meios para recuperar o menino, que é criado num internato católico, sob estreita supervisão do papa.

Ao mesmo tempo, a história tem um forte contexto político, já que naquele momento líderes como Garibaldi e Mazzini moviam seus exércitos pela unificação da Itália, finalmente retirando ao papado o seu poder político. O jovem Mortara fora também um dos reféns desta guerra em que a política e a religião se misturaram, num processo que expõe os abusos cometidos em nome de Deus ao longo da História que tanto agradam ao engajado cineasta italiano.

Anos atrás, um livro de David Kertzer, O Rapto de Edgardo Mortara, havia interessado ninguém menos do que Steven Spielberg, que acabou abrindo mão do projeto, que felizmente caiu em boas mãos - embora Bellocchio e sua corroteirista, a também diretora Susanna Nichiarelli, tenham se valido de outras fontes, inclusive os depoimentos do processo Mortara. Um grande acerto na versão de Bellocchio é reconstituir o cotidiano do menino no internato católico, entre pessoas e rituais que lhe são completamente estranhos - a começar pela missa em latim -, permitindo avaliar o impacto emocional de sua situação, o que permite engajamento da plateia. Mas nem por isso o diretor deixa de ressaltar o acirrado processo político que ocorre naquele momento da Itália.

Cannes está sendo também um festival que vem permitindo comprovar a força dos diretores octogenários, caso de Bellocchio e Martin Scorsese, ao lado de jovens promissores, como a franco-senegalesa Ramata Toulaye Sy, estreando como diretora no belíssimo Banel & Adama.