O impacto renovado de Martin Scorsese
- Por Neusa Barbosa, de Cannes
- 21/05/2023
- Tempo de leitura 8 minutos
Cannes - Numa edição em que Martin Scorsese volta à Croisette, e logo com uma obra poderosa como Killers of the Flower Moon (foto), fora de concurso, não é fácil comentar a competição pela Palma de Ouro, que prossegue firme, com alguns concorrentes de respeito - caso do britânico Jonathan Glazer, com The Zone of Interest, do turco Nuri Bilge Ceylan, com Kuru Ostlar Ustune (em inglês, About Dry Grasses), do norte-americano Todd Haynes (May December).. E correndo por fora, mas não sem chances de premiações importantes, duas mulheres africanas, a tunisiana Kaouther Ben Hania e seu docudrama Four Daughters e a franco-senegalesa Ramata Toulaye Sy, com o belo e delicado Banel & Adama.
Nesta noite de domingo (21), será exibida
Firebrand (foto ao lado), produção britânica de época dirigida pelo brasileiro Karim Aïnouz. Enfim, o primeiro final de semana de Cannes não deixou ninguém sem o que ver, ainda que enfrentando chuvas intermitentes e filas inimagináveis num festival que aderiu, como outros, à marcação prévia de ingressos online, mas nem por isso eliminou um grande desconforto para as plateias - aí incluídos os jornalistas credenciados, que chegaram a ficar de fora de sessões concorridas, como o curta de Pedro Almodóvar (Extraña Forma de Vida), mesmo tendo ingressos (eu mesma nem os consegui).
Mas, falando do que interessa, ou seja, cinema, Killers of the Flower Moon,
que adapta livro de David Grann sobre fatos reais, é não só um olhar para o massacre de indígenas da nação Osage nos anos 1920 como um diagnóstico sobre a continuidade daquilo que Hannah Arendt tão bem definiu como “a banalidade do mal” - um tema, aliás, que se estende a The Zone of Interest, baseado em livro do recém-falecido escritor Martin Amis e que radiografa a naturalidade amoral com que os perpetradores do nazismo planejaram e executaram a eliminação sistemática dos judeus em campos operados com a eficiência de uma sinistra linha de montagem.
Karim no tapete. Ao lado direito Alicia Vikander e Jude Law. Crédito: Soraya Ursine
Certamente, os dois filmes dialogam tematicamente, com Killers of the Flower Moon questionando, através de seus esplêndidos protagonistas, William Hale (Robert De Niro, numa das melhores interpretações de sua carreira) e seu sobrinho, Ernest Burkhardt (Leonardo DiCaprio). Todo-poderoso no território Osage, onde cria gado e é sub-xerife, Hale é uma figura paternal, respeitado por indígenas que ele chama de amigos, mas também a inteligência maligna por trás dos sistemáticos assassinatos que colhem a vida do povo originário - que é detentor dos ricos dividendos do petróleo de sua terra mas segue tutelado pelos brancos. Ernest, por sua vez, é o sobrinho tosco, ignorante e frágil, dependente do tio, e que se torna facilmente manipulável por ele como seu cúmplice e operador no roubo aos indígenas - inclusive casando-se com uma delas, Mollie (a extraordinária Lily Gladstone).
O filme de Scorsese, que trabalhou em total sintonia com a comunidade Osage - seu chefe, Standing Bear, inclusive participou da coletiva deste domingo (21) -, ergue uma ponte para a contemporaneidade com esta história de mortes em série por muito tempo ignoradas e, ainda hoje, sem a devida repercussão num país em que o racismo sistêmico, como apontou De Niro na coletiva, é um dramático problema. Por tudo isso, Killers of the Flower Moon, produção da Apple TV com estreia prevista para outubro, promete estar no centro de muitas futuras discussões. Depois de sua obra-prima, O Irlandês, Scorsese fez um outro filme à sua altura.
Nazistas em família
Outro dos títulos de maior repercussão até agora na competição, The Zone of Interest comprovou a versatilidade do realizador inglês Jonathan Glazer de uma forma talvez inesperada - e no melhor sentido. Diretor de filmes como Sob a Pele e Sexy Beast, Glazer parte do livro homônimo de Martin Amis, para retratar o núcleo familiar de Rudolf Hoss (Christian Friedel) e sua mulher, Hedwig (Sandra Hüller, mais uma vez, esplêndida, como em Toni Erdmann).
Eficientíssimo administrador do campo de Auschwitz, Hoss tem uma casa-modelo, com amplos e cuidados jardins, bem ao lado do campo - que nunca é mostrado por dentro, apenas se ouvindo seus sons, como gritos, latidos de cães, além da onipresente fumaça que emana dos fornos que mancha o horizonte. Como em Killers of the Flower Moon, o filme coloca o foco os executores dos piores crimes, beneficiando-se deles sem qualquer impedimento ético, construindo seu drama com uma complexidade impecável. Por isso, é de se pensar que não sairá daqui de mãos vazias, inclusive a interpretação de Sandra Hüller. Sandra, aliás, é a protagonista de outro título da competição, o drama policial francês
Anatomie d’une Chute, de Justine Triet, em que a atriz alemã é o maior trunfo, na pele de uma escritora acusada do assassinato do marido. Calcado no melodrama, o filme de Trier estende-se demais, com excessos que não somam à trama.
Anatomie d’une Chute, de Justine Triet, em que a atriz alemã é o maior trunfo, na pele de uma escritora acusada do assassinato do marido. Calcado no melodrama, o filme de Trier estende-se demais, com excessos que não somam à trama.
Dilemas existenciais
Outro que voltou ao melodrama, mas numa chave mais sofisticada, foi o norte-americano Todd Haynes, que injetou no concorrente May December um componente de dualidade entre duas mulheres que, em alguns momentos, remeteu a Persona, de Ingmar Bergman. Elas são Julianne Moore e Natalie Portman, interpretando, respectivamente, Gracie, uma mulher que há anos atrás esteve no centro de um escândalo, em torno de seu envolvimento com um garoto de 13 anos - que é hoje seu marido (Charles Melton) -, a outra, Elizabeth, uma atriz que pesquisa o caso para interpretá-la numa produção na televisão..
O enredo se sustenta nesta aproximação dessas duas mulheres, retratando a fascinação da atriz pela figura contraditória de Gracie - cujo mistério, afinal, a outra não consegue apreender. É um fino duelo de atrizes, numa história até certo ponto atraente, mas não totalmente satisfatória.
Habituê de Cannes, onde já venceu um Grande Prêmio do Júri (em 2011, por Era uma vez na Anatólia), o cineasta turco Nuri Bilge Ceylan desdobra, em Kuru Otlar Ustune (About Dry Grasses) o ocaso da vida de três professores no interior da Turquia. Por volta dos 40 anos, os dois amigos Samet (Denis Celiloglu) e Kenan (Musab Ekici) e a moça Nuray (Merve Dizray) experimentam o vazio da vida interiorana, sonhando com uma transferência para Istambul, uma vida diferente. Samet é o mais cético, Kenan, o pragmático, e Nuray, uma mulher que vem de um passado mas sofre as limitações de ter sofrido um acidente que lhe causou uma deficiência.
Com seus longos diálogos circulares, como toda a obra de Ceylan, About Dry Grasses discute profundamente a vida, não só na Turquia, inclusive tocando na política de uma maneira mais direta do que seus filmes anteriores. É o tipo de filme para rever e se apoderar das contradições destes personagens, em cuja história se mescla uma suspeita levantada por uma pequena aluna - assemelhando-se à situação retratada em Monster, de Kore-eda.
Mulheres africanas
Correndo por fora neste circuito de medalhões, a tunisiana Kaouther Ben Hania (de O Homem que Vendeu sua Pele) embaralha documentário e ficção para dar conta da história de uma mãe, Olfa, e suas quatro filhas, em Four Daughters. A figura dessa mãe é fascinante em suas contradições e também em sua força para criar as meninas sozinha num contexto social bastante adverso. O maior drama vem do desaparecimento de duas delas, as mais velhas, Gohfrane e Rahma, que aderiram ao ISIS. As duas mais novas, Eya e Tayssir, ocupam o relato ao lado de atrizes que interpretam suas irmãs. Apesar de algumas hesitações na forma como conduz este dramático relato, trata-se de um filme de interesse pelo que traz de retrato da condição feminina num país islâmico.
Outro filme ambientado num país muçulmano, no caso, o Senegal, é Banel & Adama, em que a roteirista franco-senegalesa Ramata Toulaye Sy (autora do roteiro de Nossa Senhora do Nilo, de Atiq Rahimi) estreia na direção e também assina o script.
Apoiado na belíssima fotografia de Amine Berrada e com um elenco de atores não-profissionais, o filme retrata a história do casal Banel (Khady Mane) e Adama (Mmaou Diallo), que enfrentam problemas em sua pequena comunidade rural por começarem a recusar certos ditames tradicionais - Banel não quer ter filhos, Adama recusa tornar-se chefe da aldeia, apesar de a isso ser destinado por sua linhagem. Da maneira sutil como essa história se desenvolve, comenta-se a necessidade de liberdade, a luta entre tradição e mudança e também a obsessão amorosa. É um filme com muitas camadas, que permanece na memória muito tempo depois que a projeção terminou.
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